DILÚVIO DE FALENAS
Luís Valise

 
 
O Ereneu era antes de tudo um feio. A ascendência sertaneja suprira-o da força necessária para conviver com aquela desdita, e ele desfilava com resignação o corpo mirrado que segurava a cabeça grande, coberta por uma penugem encrespada que crescia em várias direções. A testa era curta, e sobrancelhas espessas davam ar sombrio a um par de olhos pequeninos. O nariz grosso, abatatado, e os lábios fininhos. Um bigodinho ralo, que caía pelos cantos da boca à moda dos mandarins. Despejado na cidade de São Paulo, que não costuma ser gentil com os pobres de qualquer origem, vivia num quarto de pensão junto com três outros ajudantes-de-qualquer-coisa. Dormiam dividindo os ruídos, os cheiros, e a solidão.

Certa noite o Pedrosa, que ficava à sua direita, anunciou:

— Ereneu, a Valdinéia tem uma prima que quer te conhecer. Topa?

Um súbito calor nas faces. Ereneu não escondeu a ansiedade:

— Me conhecer? Quem é ela? Você já viu?

— Vi. Quebra o galho. Sábado é aniversário da Val, você pode ir junto comigo.

Pouco acostumado às coisas fáceis, Ereneu fez um "Vou pensar". Depois virou de lado, e foi um custo pegar no sono. Por sua cabeçorra rodopiavam bocas, seios, coxas... Dormiu.

Na sexta ele confirmou com o Pedrosa: — Tô nessa. No sábado de manhã foi dar um trato na carapinha revolta. Resolveu cortar a barba rala. O barbeiro aplicou toalha quente, a pele ficou limpinha. A dona da pensão, Dona Lucimar, passou a calça verde e a camisa marrom. O sapato não era novo, mas ainda não estava furado. De noitinha, ao saírem, o Pedrosa mangou: — Estás um boneco! Ereneu sorriu sem jeito, que sorrir também é questão de prática.

Quando o ônibus chegou perto da casa da Valdinéia a roupa já estava meio rombuda. Não havia iluminação na rua, e os dois caminhavam com cuidado pela calçadinha de terra batida. O portão da casa estava aberto. Pedrosa bateu palmas chamando pela namorada, que apareceu dizendo "Entra, entra, não repare que a casa é pobre", como se fosse preciso qualquer aviso. Ereneu foi atrás do Pedrosa, estendeu a mão meio desenxabido, "Parabéns", e de repente se viu na luz da sala da casa de poucos cômodos. Não olhou imediatamente em volta. As faces em fogo, só aos poucos foi vendo um rosto aqui, outro ali, o sorriso encabulado espichando o bigodinho de mandarim, até bater o olho numa garota que também estava com as faces avermelhadas, e enrolava nas mãos um lenço imaginário. Ereneu teve certeza na hora: "É ela!". Era mesmo. Edicleusa era uma morena de estatura mediana, cabelos compridos, e feia ao primeiro olhar. Depois de algum tempo, examinando-a melhor, Ereneu confirmou que ela era mesmo feia. Tinha um rosto magro e comprido. O nariz era adunco, os dentes encavalados. Sentido-se seguro na igualdade percebida, aproximou-se decidido:

— Você é a prima da Val? Eu sou o amigo do Pedrosa. Estendeu a mão e sentiu que a mão dela era macia. Notou que os olhos eram grandes e brilhantes. Sua voz, de início, estava trêmula:

— Eu sei. Você é o Ereneu. Eu sou a Edicleusa. Mas eu não gosto muito do meu nome, prefiro ser chamada de Di. Tudo bem? Estava tudo bem, e a conversa engrenou. Os gostos iam-se coincidindo, alguém colocou uma fita pra tocar, a mesa foi arrastada prum canto, a cerveja já tinha soltado o sorriso do Ereneu, que tirou a Di pra dançar. Rosto colado, Di foi se encostando aos poucos, até sentir um volume. Sorriso maroto, olhou no olho do Ereneu e perguntou o que era aquilo. A resposta foi curta e sincera:

— É a faca.

No início Edicleusa se assustou. Depois, foi se acostumando com a faca, como quem se acostuma com a feiúra. Alguns meses de namoro, e ela aceitou a proposta do Ereneu: os dois juntaram os trapos e os salários. Enfim os dois bicudos se beijavam. Alugaram um cômodo e cozinha nos fundos de uma casa próxima à da Valdinéia. Saíam de casa cedo, chegavam tarde, ficavam juntos praticamente o tempo de dormir. Nos finais de semana o Pedrosa aparecia e os quatro se juntavam num churrasco no quintal da casa da Val. A cerveja era mais importante do que a carne. Ao anoitecer, depois que já tinham tomado todas, o Pedrosa acabava ficando pra dormir, e como o pai da namorada fazia jogo duro, ele dormia mesmo era na casa do Ereneu, no chão, ao lado da cama do casal. Uma vez o Ereneu perguntou ao amigo por que ele não se casava com a Val, e ouviu como resposta que "Tá bom assim, se melhorar estraga." 

A pedido da mulher Ereneu tinha raspado o bigode e deixado o cabelo crescer em alvoroço. Estava mais confiante, e já nem se achava mais tão feio. Até a Di ele achava bonita quando vista de um certo ângulo. Tinham comprado uma televisão em muitas prestações, pois ela queria porque queria assistir às novelas: 

— Todas as minhas amigas assistem, menos eu, que fico sem assunto.

Naquele sábado o sol estava de rachar. A cerveja gelada corria fácil, o cheiro da carne assada aguçava os sentidos, e a tarde encontrou os quatro de olhos mortiços. Ereneu comandou "Todo mundo lá pra casa". Pra ver televisão tinham que sentar na cama, mesmo. Acabaram pegando no sono encostados uns nos outros. Depois de um par de horas foram acordando, boca seca, cabeça doendo, barulho de urina no banheirinho do lado de fora. A noite estava estrelada. Completamente estrelada. Ereneu até lembrou do céu da sua terra, um pisca-pisca alucinado. Começou a passar um filme na tevê. Pra lá da metade a Val se deu por vencida. Disse boa-noite, ficou no portão um tempo com o Pedrosa, que depois voltou, se ajeitou no chão e foi logo apagando. Ereneu chamou a Di para ir até o quintal. Lá mostrou o céu. Ela sorriu para o alumbramento, deu um suspiro e voltou pra dentro. Ereneu também entrou. Apagaram a tevê. O ronco do Pedrosa era um corta-barato, e o Ereneu pegou no sono.

A madrugada ia pela metade quando ele acordou. Deu pela falta da mulher ao seu lado. Ouviu uma fungação abafada ao lado da cama. A mão buscou a faca debaixo do travesseiro. Mexeu-se com cuidado até a borda da cama. Viu dois vultos embolados. Não sabia quem estava por cima, quem estava por baixo. Nem precisou sair da cama. Ergueu o braço e deu uma facada no meio do corpo mais próximo. Depois do baque surdo, ouviu-se apenas um "Ahnnn" vindo do fundo de uma garganta moribunda. Silêncio. A voz da Di, num sussurro:

— Ereneu?

Ele já sabia quem estava por baixo. Desceu da cama, revirou o corpo que estava por cima,e sem acender a luz, pediu:

— Vamos lá pra fora.

A mulher ajeitou a combinação manchada de sangue e obedeceu. O céu continuava estrelado. O homem estava com a faca na mão. Sua voz estava calma:

— Por que, Di, por que?

— Ele dizia que eu era bonita...

— E você acreditou?

Por cima da mão que segurava a faca uma estrela cadente riscou o céu. Edicleusa fez um pedido. A lâmina entrou bem no meio do seu peito, e o brilho do seu olhar fugiu para a cauda do cometa. 
 
 

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