A FEIA DA JANELA
Paulo Panzoldo

O Veríssimo escreveu crônicas e crônicas dedicadas à beleza da Patrícia Poeta e o máximo que conseguiu foi um protocolar "prazer em conhecê-lo" num programa do Jô, dias antes que ela embarcasse para Nova York - sem ele. Não me lembro se o Jô perguntou ao cronista os motivos de tanto encantamento, afinal, beleza não necessita explicação. Mas, tivesse ele escrito alguma coisa sobre a beleza de Araci de Almeida...

Para Vinícius de Moraes, a beleza era fundamental e muita mulher feia não o perdoa por isso até hoje; para o Cony, ao escrever sobre amante ideal, a beleza jamais será fundamental, pois toda mulher tem um ponto oculto, vulnerável, decisivo, um roteiro de prazer e dor a ser perseguido,
descoberto.

A beleza é relativa. E não quero aqui dizer que ela "está nos olhos de quem a vê", nada disso. Quero dizer, sim, que ela é tão relativa que "especialistas" trataram de lhe impor padrões de medidas milimétricos.

Amar o belo é fácil. Já, para amar o feio - ou a feia - tem que ser muito, mas muito macho!

Já teve gente compondo para as feias, é verdade. O Chico falou "da moça feia que saiu na janela pensando que a banda tocava pra ela". Seria a "Eutanásia"?

"Eutanásia" era o apelido da moça mais feia da cidade onde eu cresci e o fato de ser filha de um rico fazendeiro não ajudava em nada. Era feia como trombada de carreta, cruz credo. Saía pouco e não tinha amigas. Jamais soube o que era um baile, quanto mais o gosto amargo de uma paixão.

Netto era motociclista, líder de uma escuderia que disputava corridas pelo interior de São Paulo. Gostava de uma boa conversa e nunca estava só. Era desses de parar na estrada para acudir um acidente ou auxiliar no conserto de um carro quebrado, de atravessar velhinha na rua, de brigar para auxiliar alguém mais fraco. Não perdia um velório. Não que fosse defunteiro, mas porque conhecia e gostava de todo mundo. Na missa, aos domingos, fazia sinal ao Padre Paulo quando o tempo do sermão já havia ultrapassado os limites do mais fervoroso cristão. Depois, ia pra sacristia dividir o bom conhaque que o clérigo reservava para as longas conversas com o amigo.

Esses motociclistas acabaram como personagens de uma novela "global" levada ao ar no final dos anos 60, representando a "rebeldia" dos jovens daquela época, ainda em preto e branco.

E todo ano tinha concurso de fanfarras na cidade. Eram bandas formadas por alunos das escolas. A cidade fervia, vinha gente de toda a redondeza e, dizem, até da Capital. O trajeto era sempre o mesmo: começava no Ginásio Municipal e terminava no final da Rua Rio Grande do Sul. Era uma banda atrás da outra, cada uma representando uma escola, espaçadas o suficiente para que a desafinação de uma não atrapalhasse a desafinação da outra. Como "batedores", as cinco possantes motocicletas, com o Netto à frente.

Foi assim durante anos, até que uma vez, lá ia o Netto puxando a fanfarra, a uns cinqüenta metros à frente dos demais "batedores", quando algo entupiu a tubulação do combustível e sua moto desandou a falhar. Ele acelerava para tentar sanar o problema, mas não adiantava. Como a primeira banda se aproximava, ele levantou o braço esquerdo sobre a cabeça e apontou para a Rua Acre, indicando que iria virar à direita. Virou e conseguiu, ainda, percorrer uns trinta metros, parando na frente de um sobrado branco, com janelas azuis e um lindo jardim.

Sem perceber o problema, e acostumados a seguir o líder, os outros "batedores" repetiram a manobra e viraram à direita ao invés de seguirem reto. Atrás deles, seguiu a primeira banda. O povo estacionado nas calçadas da Rio Grande do Sul começou a vaiar a mudança do trajeto e quando o Netto deu pela coisa, já era tarde. Uma janela do sobrado se abriu e dela surgiu "Eutanásia". Pela primeira vez em décadas, alguém se lembrou de mudar o trajeto da fanfarra para que ela, a feia da cidade, pudesse ver a banda passar.

E a banda passou para "Eutanásia". E o Netto sorriu para ela.

No dia seguinte, o jornal estampava a manchete: "Rebeldia de Netto estraga tradição de desfile!". Não se abalou, pois sabia que fizera uma alma feliz.

Mais tarde, à porta de casa, Netto encontrou uma carta. Uma carta apaixonada. Era de "Eutanásia". Ele correu para dentro, fez as malas, despediu-se dos pais e viajou pra São Paulo, onde vive até hoje.

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