A VIDA É BELA?
Sérgio Galli

De antemão aviso aos navegantes que ao longo desta crônica o que será escrito não trará nada de novo no quartel de Abrantes. Além do mais, minha taxa de misantropia está bem elevada. Falar de amor em tempos de guerra pode parecer teatro do absurdo, algo surreal, quiçá, dadaísta. Mas o cubista Picasso conseguiu expressar o feio, a guerra, de uma forma bela, "Guernica". Mas afinal o que é belo? Não nos acostumamos a amar, fruir, apreciar o feio?

Vivemos em tempos sombrios, como diria Brecht. Mas se dermos uma espiadela a história da humanidade, amiúde, é a história da pilhagem, do butim, dos genocídios, dos estupros, povos subjugados, escravizados, esquartejamentos, empalamentos, aniquilação, tortura, humilhação, desprezo.... Assim, dá para se falar de amor em tempos de cólera? De dengue? De aids? De ira? Dá para escrever poemas de amor enquanto os senhores da guerra, os senhores do universo afiam seus sabres, exibem seus caninos, disparam seus mísseis? Dá para escrever sobre amar o feio o belo enquanto o morticínio (com cenas de canibalismo) continua a reinar entre tribos no Congo? 

O belo temos dificuldade em encontrá-lo ou defini-lo. Ouvir um lieder de Schubert, um improviso de Coltrane, admirar um van Dyck, um Rubens, um Picasso, comover-se com um Fellini, um Kurosawa, um Scola, talvez. 

Já o feio nos defrontamos com ele em nosso dia-a-dia. A poluição (do ar, da água, visual, sonora e principalmente mental) da cidade grande. O barulho ensurdecedor do metrópole que nos impede de ouvir o rumor das folhas, o burburinho das flores, o gorjear dos pássaros e, principalmente, de escutar a nós mesmos, nossos medos, nossas angústias, nossas tristezas e pequenas alegrias, ou seja, entrar em contato conosco. E tantas outras aflições que se apossam de nossas mentes e corações todo o santo dia: juros, taxa do dólar, taxa de inflação, impostos, assassinatos, tráfico, drogas, tráfego, trânsito, contas a pagar, insatisfações, estresse, enfim, as dores e cores da civilização.

Dá para falar de vida bela se o horror mais uma vez bate à nossa porta mas, desta vez, estamos anestesiadas, paralisados pelo ópio óliudeano, pelo grande irmão que nos embrutece, nos emburrece, nos entorpece? O aviso de Hiroxima de nada adiantou. Nada de novo front. Os mortos e mutilados nas trincheiras de Verdun, do Somme, de Dunquerque, de Stalingrado, de Leningrado, de Kursk, de Dresden, de Leipzig, do delta do rio Meckong, do Campuchea, da batalha de Argel, de Sbrinica, de Kosovo, da Somália, de Kandaar, do Congo, da Etiópia não serviram para nada, não passam de estatísticas de relatórios oficiais. A pulsão de morte, segundo os freudianos, está aí mais uma vez. A humanidade acabou. Ces't fini. Um réquiem alemão de Brahms para o epitáfio. Alguns jasmins e crisântemos para dizer que não falei das flores. O belo é feio?

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