AUTO-RETRATO
Fernando Borba

A multidão formava uma grande centopéia humana, arrastando-se pelas alamedas até o portão do Museu. Na fila da visita coletiva do Colégio, uma garota explicava: "Ele era holandês, mas viveu muito tempo na França." "Foi ele quem cortou a orelha e mandou para a namorada." "Não foi para a namorada, foi para o amigo, Gaughin. Ele nem tinha namorada."

"Peraí, Maria Clara, então ele era gay?"

A professora que conduzia a turma levantou a cabeça: "Psiu, Vânia... Isso é jeito de falar?" Resolveu assumir as explicações: "Van Gogh é considerado o maior dos pintores impressionistas. Nasceu em 1853 numa pequena aldeia holandesa."

"Ei, cara, assim me mata!" - gritou a menina chamada Vânia para um rapaz que acabava de tropeçar contra ela. "Perdão, perdão" ele gaguejou. "Eu machuquei você? É que estão me empurrando também." Tinha a voz tranqüila, gutural, macia. Ela se acalmou, não esperava um pedido de desculpa, sequer uma explicação, pois todos se empurravam. Parecia que a população inteira da cidade estava na frente do Museu de Arte Moderna, havia um clima de excitação e alegria. A exposição de quadros originais vindos da França seria apenas naquele domingo.

A enorme fila atrasava-se. A professora continuou: "Van Gogh morou com seu irmão Théo e sua cunhada Jo, em Arles, onde pintou suas obras mais importantes." Vânia reparou melhor no rapaz: não era jovem, era um homem maduro, teria uns trinta anos. Olhos azuis, uma barba ruiva que parecia emendar com os cabelos. Vestia um casaco cinzento sobre uma camisa branca abotoada até o pescoço. Ele evitava olhá-la e aquilo a espicaçou. Olhou-o de frente: "Que horas são? Meu relógio parou" disse, acariciando o próprio relógio, "deve ter sido a pilha." O homem de barba exibiu os pulsos, fez um gesto desolado para os bolsos, murmurou "Não sei. Meio-dia? Ou menos?" Ela foi em frente: "Meu nome é Vânia, e o seu?" "Vicente". 

A centopéia pareceu entrar em ebulição, todos começaram a correr, uns gritavam com desespero "Vão abrir os outros portões! Vamos, vamos!". O grupo do colégio não se decidia; Vânia hesitou por um segundo; de repente agarrou a mão de Vicente e o arrastou. Tropeçavam nos canteiros, rindo muito. Chegaram junto da grade e resolveram esperar ali, pois era impossível romper logo a barreira humana à sua frente. Vânia já perdera definitivamente as colegas. "Que sufoco, não é? Espero que valha a pena. Você conhece as pinturas da exposição?" "Sim, conheço." Passou a mão pela barba e continuou: "Veja só, Vânia: estão querendo roubar uma delas." "O quê? Que história é essa?" A multidão começava a se espalhar. Com os portões laterais abertos a centopéia humana havia se partido em várias direções e a pressão diminuía. Eles andavam rapidamente agora, e em pouco transpunham as borboletas do saguão. Vicente murmurou: "Vânia, você pode evitar que fujam com uma das telas mais importantes da exposição. O último Auto-retrato de Van Gogh." "Você é louco ou o quê?" "Vânia, depende de você. Quando chegar junto do Auto-retrato de 1890, grite bem forte: Esta tela é falsa! Roubaram o original e substituíram por esta cópia" "Acha que sou maluca? Por que não faz isso você mesmo?" "Está em suas mãos, Vânia."

Receberam o catálogo e seguiram, calados. Vânia procurava suas colegas entre a multidão; precisava falar com a professora, desabafar com sua turma. Olhava agora para Vicente com temor; ele seguia alguns passos atrás, muito tranqüilo, olhando os quadros. A garota admirou a paisagem da 'Ponte de L'Anglois', achou belíssimo o colorido incendiado do "Trigal com corvos'. O 'Retrato do Doutor Gachet' lhe despertou uma estranha melancolia. Pelos cantos dos olhos procurava Vicente, vários metros atrás; teve vontade de voltar até ele para comentar as pinturas, mas um medo esquisito a dominava. De súbito, tomou um susto: o rosto de Vicente, na grande tela exposta, a olhava com o cenho fechado. Era ele mesmo: a barba ruiva enredando-se pelo cabelo, a camisa branca abotoada até o pescoço, o mesmo casaco cinza... Voltou-se para chamá-lo na fila, não o viu mais. Parada diante do quadro, Vânia interrompia a marcha dos visitantes. Chegou mais perto, olhou fixamente os olhos azuis que pareciam falar com ela. Tremia da cabeça aos pés. A fila já a pressionava para seguir. Procurou Vicente de novo, não o encontrou. Um guarda aproximou-se, mandou que seguisse em frente. Vânia deu dois passos, indecisa. Olhava para o rosto de Vicente reproduzido na tela em centenas de pinceladas curtas, nervosas. Sentiu que as íris azuis a miravam com reprovação. Parou, voltou. O guarda falou-lhe com impaciência: "Em frente, em frente!".

Subitamente, Vânia gritou muito alto: "Roubaram a tela! Vão levar o original! Esta aqui é falsa!" O som de suas palavras reverberava no espaço do Museu, ela sentiu uma tontura e perdeu a noção de tudo.

"Tudo bem agora? Puxa, menina, que deu em você?" dizia a professora. Suas colegas espichavam as cabeças para vê-la bem de perto. Estava deitada num sofá, numa sala que parecia ser a Diretoria do Museu. Alguém lhe chegou um copo d'água: "Já está melhor, minha jovem?" Os homens de terno cochichavam entre si: "É melhor que ela vá para casa agora. Amanhã vamos falar com seus pais, tomar um depoimento formal. Num primeiro exame, a tela é mesmo falsa. Grosseiramente falsa. Os detetives da seguradora já tomaram todas as providências, o original não tem como sair."

A professora perguntou, num sussurro: "Afinal, Vânia, como você soube?"

"Foi Vicente quem me contou, é claro. Vincent Van Gogh."

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