AUTO-RETRATO
Luciana Priosta

Tem dias em que a gente se sente como quem partiu ou morreu. Provavelmente o poeta urbano deve ter tido um dia daqueles quando versou esta preciosidade. Por outro lado, já sem o peso das laboriosas decisões que fazem a roda do nosso mundinho girar, peso que a morte me desobriga carregar agora, talvez eu consiga finalmente falar sinceramente sobre mim. Finalmente estou me sentindo mesmo como quem partiu ou morreu.

Cá estou eu, espectadora do meu próprio velório. Já acompanhei todo o perereco do transporte do meu corpo até São Paulo. Fui sentadinha no banco de passageiros tentando puxar conversa com o motorista que insistiu sistematicamente em ignorar-me. Não esqueçam meu último endereço em vida: Joinville/SC. Portanto, foram quase dez horas de rejeição até o velório municipal de Rio Claro/SP. Magnífico exercício de paciência para quem tem a mania da perfeição forjada pelo desejo irracional e constante de ser aceita neste mundo véio sem porteira. Interessante notar que a gente continua com exatamente os mesmo defeitos quando morre. Nem queria que ele me respondesse mesmo. Aposto que ele tinha bafo e um papo chatíssimo. Me desculpem o comentário maldoso, mas ainda estou ligada às coisas terrenas, sabem como é.

Passeando entre as pessoas presentes no meu velório, fico realmente espantada com a multidão. Será que sou mesmo uma defunta querida? Claro que a maior parte são curiosos cronicamente mórbidos que migraram dos velórios vizinhos. Morreu um bocado de gente esta noite. Mas de longe o meu velório parece ser o mais concorrido dentre as capelas. Afinal, sou uma defunta importada, vim do sul! Noto uma senhora de cabelos obviamente tingidos de loiro-escuro-médio-238 com um escandaloso avental florido. Descascando batatas duma bacia imensa aos seus pés, transborda-se numa torrente desatada e chorosa de lamúrias que parece ter origem num tempo em que o próprio tempo ainda ensaiava existir. "Merda, bosta e cagalhão, que gajo atropelou minha estrela? Também, sempre aluada, ensimesmada, menina calada, só podia dar com os burros, merda, bosta e cagalhão...". Minha avó. Encosto a cabeça no seu colo e sorrio. Só ela sobre a terra foi capaz de colocar tanta porcaria na mesma frase. Salvo talvez George W. Bush. 

Rindo dos poucos modos de minha avó, beijo-lhe as mãos e afasto-me atrapalhadamente. Assim como teria feito se estivesse viva: tropeçando em todos os pés que aparecem e que imagino aparecer no caminho. Uai, morto tropeça, sim! Estabanada a vida inteira não seria diferente na morte. Sempre tive coleção de hematomas pelo corpo. Um jeito pouco salutar mas eficaz de chamar a atenção: todos riam de mim enquanto eu imaginava que riam para mim. A necessidade atroz de ser aceita.

Pode até ser que minha auto-estima sempre foi meio baixa, mas por incrível que possa parecer, nunca tive problemas com ela. Bem, ou quase isso. Sentimentos que considerava menores nunca tomaram conta de mim. Mas não por possuir sentimentos ou alma elevados. Teimosia pura mesmo. Vou lá eu deixar de fazer minhas coisas por causa dessas bobagens? Meto o pé e vou em frente! Mas aviso ao navegantes: isso é ruim, viu? E agora que sou só alma e não tenho mais o corpo a reclamar por desejos imperiosos que desviam minha atenção das dores da alma...ui! A gente devia morrer e levar o analista junto, porque tudo é mais intenso agora.

Me vi no centro de um grupo de primos, muitos que não via há anos, contando piadas sujas e escondendo o riso das tias carpideiras. Eu mesma já participei desta rodinha muitas vezes. Era só tio fulano bater as botas e nos encontrávamos. Minha família é uma das famílias paulistanas mais espalhadas que já se viu. Todo mundo nasce e é enterrado em São Paulo (depois do meu irmão, sou o segundo membro da família que não é enterrado na capital!). Mas tem gente espalhada em Minas, Espírito Santo, Mato Grosso. Tem até um tio avô maluquérrimo, abandonado no altar pela noiva o que o levou a nunca mais bater bem dos pinos, que mora em Roraima. Velório e meio ele aparece. De repente bate um medo-pânico de ser citada na rodinha... É claro que gostavam de mim... precisam gostar de mim! Mas o tom das risadinhas e os olhares na direção do caixão não me encorajam a continuar por ali. Negar sempre foi muito mais confortável do que encarar a realidade. Mania a minha desistir de tudo que começa a ficar mais difícil. Meu mundo era cor-de-rosa sabiam? Estaria com uma taquicardia louca se meu coração não estivesse lá bem mortinho com o meu corpo no caixão. E por falar nisso (fuga estratégica), ainda não fui me espiar. Deixa ver.

Fora um roxão no queixo, tudo em ordem. Tô bonita lá! Tô usando aquele vestido de lã que guardei por anos e só consegui inaugurar quando me mudei para Santa Catarina. Nossa! Nunca pensei que tivesse olhos tão grandes... Todo mundo vive dizendo que são puxadinhos, e para mim puxadinhos ficaram sendo. Ou o espelho me enganou por anos, ou meus olhos cresceram depois que morri. Olha só, estou de batom! Ao menos tiveram o pudor de não usar os vermelhos que usava quando ainda era viva. Sempre achei melhor chamar atenção para a boca do que para o que saía dela. Vai que alguém descobrisse que eu era apenas normal? Vai que alguém descobrisse que nunca entendi nada sobre os arcos góticos perniceais na arquitetura ao sul de Flandres? Jamais!

Minha mãe está sentada na cabeceira de meu caixão. Séria, abatida, mas muito bonita. Sempre achei minha mãe bonita em meio a tragédias. Não que estar morta, para mim, seja uma tragédia. Não que minha família tenha passado por muitas. Até porque tragédias só o são quando acontecem com o vizinho. Ela não chora e fica linda assim. Aprendi com ela e por isso também não estou chorando agora, e olha que quem morreu fui eu, hein? Lágrimas desidratam a pele. Além do mais a gente nasce com um estoque limitado de água para chorar. Se chorar a toa, não sobra lágrima para chorar por um grande amor. Morri sem chorar por um grande amor.

E por falar em amor, olha lá meu primeiro namorado! Ah, se eu soubesse namorar na época teria dado um bom trato no sujeito. Ele parece muito envelhecido. Ou será que minha memória congelou aos 12 anos? Sabe por que nosso namoro acabou? Eu dei um soco nele. Bem no centro do nariz. Pau! Minhas amigas me disseram que ele estava espalhando que tinha me beijado de língua. Fiquei cega de raiva. Essa foi a primeira vez que me deixei dominar por um sentimento tão ruim. A segunda e última foi quando despejei uma menina que morava comigo. Abri a janela e joguei tudo que achei pela frente: copo, discos, livros, cama, vídeo cassete, só não joguei a menina porque a cegueira passou na hora H e sai correndo com ódio de mim e vergonha do mundo. Dentre vários outros fatores ainda não descobertos pela ciência, esses dois rasgos de irracionalidade me fizeram uma pessoa controlada. Emoção é coisa de gente de cortiço, oras!

Ih! Estão fechando o caixão! Ainda não vi meu marido, ou meu viúvo, ou sei lá eu. Imaginava-o compungido e chorando muito. Ele sempre chorou muito. Acho lindo homem que chora. Acho que foi por isso que me casei, alguém tinha que chorar na família, porra! Onde estará nesta...

Sinto alguém me segurando pela mão. Olho para trás. Um moço muito branco, de pestanas muito grandes, lábios muito vermelhos. Seus olhos são iluminados e tem um fio de sangue escorrendo pelo nariz. Meu irmão! Ele ri, e diz como se fosse a revelação que salvará a humanidade: "Se a gente coloca a letra B na frente de Estados Unidos fica 'Bestados Unidos!' Mas se a gente coloca a letra B na frente de Egito fica 'Begito!'". E me sapeca um em cada bochecha para que não restem dúvidas. Em seguida quase re-morre de falta de ar. Meu irmão sempre teve um senso de humor muito particular.

Saímos dali de mãos dadas. Ele me pergunta se não vou ver o enterro. Dou de ombros. Que diferença faz agora? Nada do que fui poderá ser mudado. O que me resta agora é esperar o próximo bonde. E rogar a Deus para que eu reencarne mais humilde da próxima vez.

Aviso: esta louca que lhes escreve encontra-se sob tratamento médico e sob o efeito de drogas fortíssimas; não representa nenhum perigo para integridade física, psicológica ou moral dos que convivem com ela ou para a sociedade.

Ainda não.

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