TESTAMENTO
Alberto Carmo

Estou aqui na janela do meu quarto na periferia. Comprei este apartamento há alguns anos. Estou ditando meu testamento a uma amiga - sei que é apaixonada por mim e que não deixaria de me fazer este último favor. Tenho tanta pena dela. Não achou nada melhor que eu, e eu a iludi no sonho nobre com minhas poucas capacidades. Como nem eu, um rato de esgoto das grandes cidades, pude amá-la em plenitude, dou-lhe a migalha de escrever algumas palavras que nem sei pronunciar direito. Creio que levarei horas a fio até decompor minha vida sórdida. Quando, um dia, alguém encontrar essa folha de sulfite barato, saberão que optei por deixar gravado, com minha Mont Blanc, o único momento de lucidez que experimentei. Sei que sou digno de pena, mas para onde vou não haverá nenhuma dignidade. Portanto, serei o exato verme que escondi de mim até completar meus quarenta anos. Tudo que sei agora é que sou o que fiz de mim. Um bastardo.

Lambi botas como se fumasse cigarros. Minha língua fede das cinzas. Ao lembrar da minha infância, vejo meu pai orando agradecido. Aquele monte de notas amassadas que recolhia atrás do salão da igreja era nossa fortuna. Eu ria, escondido atrás da porta, sabendo que me traria presentes comprados com as preces de pobres desesperados. Não passava de uma criança querendo mais comida e brinquedos. Viciei-me naquilo e ria escondido, como um anão bêbado.

Casei-me cedo com uma pobre coitada, que mantenho até hoje com uns poucos trocados. Se meu pai quis que eu fosse esperto, cumpri-lhe o desejo com orgulho desmesurado. Desde então fui pródigo em criar situações vantajosas. Aliciei sentimentos e jogos sujos, buscando meu lucro covarde. Fui um nada que queria tudo. Nunca tive profissão alguma, a não ser como um subalterno qualquer. Em todas amealhei propinas que me pagavam a cerveja barata. Vaguei entre desempregos constantes e penduras na padaria. Fiz-me um ídolo de inocentes e furtava-lhes os sonhos que eu não podia ter. Vivia na inveja dos que faziam algo. Eu, que nada sabia fazer. Talvez pudesse tocar um pandeiro em gestos de símio em ritmo epilético. Mantive meu teatro hermético, inviolado. 

Tive mulheres e a todas traí com meus olhos de raposa. Fugi das mais cultas e busquei as minguadas, que as podia enganar com minhas falácias. Quis estudar as químicas e os logaritimos, mas mal sabia o primário. Na falta do estudo usei todas as minhas argúcias herdadas. Convenci as correções de mentes desavisadas, e nelas me fingi em artimanhas. Nelas me socorri da minha ignorância reprimida. Aprendi a gritar meus parcos talentos a uma multidão de abandonados. Dela faço usufruto da solidão e das noites escancaradas. Sou cidadão das ruas, dos becos, das madrugadas. Busco restos que me alimentem a mente apodrecida. Como roedor, agarro cada espaço onde consiga enfiar minha cabeça ovalada, minha ossada. Naufrago meu ser virulento onde me derem pousada. 

Tenho medo de minha boca e de minhas palavras. Abrigo-me nos ombros de uns poucos idiotas que me acreditam. Decoro nomes que acho em revistas e os declamo como profundo conhecedor. Sei de mim que não conheço nada, apenas o bolor. Invejo a todos que encontro em minha disfarçada inquietude. Sei que ninguém poderia confiar em mim, mas insisto nos engodos que me moldam o espírito. Aprendi a viver de prazeres infames, nauseabundos como meu hálito. Seqüestrei uns poucos conhecimentos aqui e ali, e deles fiz meu diploma. 

Hoje estou armado de tudo que pude amealhar nas minhas leituras soturnas. Sei de escrever coisas sísmicas e cataclísmicas, embora as não saiba plasmar sem a ajuda de alguma alma noturna. Tenho medo. Repito, um medo infinito. Sei das minhas poucas forças e delas faço um fantoche de cinzas e sedas falsas. Sou tão burro que caio em todas as armadilhas que vejo. Quem me dera proteger-me dos meus desejos. 

Aprendi a usar e abusar. Lembro-me das notas amassadas que me traziam biscoitos e calças-curtas. Encaro qualquer desafio com as mãos de alguma mulher abandonada apertando meu gatilho. Sirvo-me delas como um rufião serve-se dos filhos. Eu, que ousei gerar fetos de mim, lá e acolá. Não presto, sei-o, mas desvario. 

Na minha insana luta por ser alguém tudo aceito. Ajo como pervertido entre moleques, bichanas, ladies & gentlemen. Vendo tudo, até a alma que não tenho. 

Pulo a janela até o terraço. Pinto a carne de segunda em cores de picanha. Como tudo sem mastigar, engulo minha sanha. Aperto minha garganta e meus olhos saltam, sedentos da minha gana.

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