SAÍDA DE EMERGÊNCIA
Jorge Gomes da Silva

O dia correu-lhe mal, no trabalho. Todos quantos dele se haviam aproximado ao longo das horas tão difíceis de passar pareciam coordenados no propósito de lhe acrescentarem mais uma gota de vinagre no focinho. Brutos como as portas. Os chefes porque podiam, os clientes porque pagavam, os colegas porque sim.

Quando chegou o momento desejado e virou as costas à matilha de rufiões, concluiu que não conseguira trocar uma frase em condições com qualquer das criaturas que partilharam o seu tempo.

No autocarro, as fronhas exaustas e enfadadas dos restantes passageiros não davam azo ao mínimo esboço de conversação. Era medonho o clima que se criava entre paragens, barulho do motor diesel sobreposto a todo o ruído que dezenas de pessoas comprimidas num invólucro metálico com rodas eram capazes de produzir. E o cheiro do combustível queimado à pressão pelo mínimo esforço de subida também superava o empenho de muitos concidadãos em transformarem o percurso dos restantes numa viagem ao inferno, secção de perfumaria.

Percebeu que os vizinhos do quinto B não pretendiam conviver por breves instantes ao longo do caminho na entrada do edifício, até ao elevador. Ou ascensor, como preferiam alguns, essa fonte constante de silêncios embaraçosos ou balbúcios de conversa circunstancial. Os do quinto aceleraram a passada quando se deram da conta da incómoda coincidência. Claro, na pressa não conseguiram meter a chave à porta com a destreza que se impunha. Chegou a tempo de evitar que lhe deixassem fechar a porta na cara, distraídos claro está.

Uma salsicha fresca atolada de gorduras nocivas e envolta em folhas rijas de lombardo quase crú. Sem tempero. Foi ao que lhe soube, aquele pedido de desculpas viscoso, mal embrulhado num esgar que não passaria por um sorriso no ensaio amador de uma peça de teatro num liceu.

Quase cuspiu, mas optou por retorquir no mesmo tom. Boa tarde, não faz mal. E fingiu procurar a chave da caixa do correio, oportunidade de ouro para os fulanos baterem em retirada quase de mergulho para a segurança do elevador.

Acabou por encontrar a bendita chave e abriu a portinhola cuja ranhura, minúscula, constituia um desafio profissional à altura do melhor de entre os carteiros. Porém, nunca um desses míticos bastiões da solicitude e espírito de missão postal passaria naquela rua. Quem o gritava eram os envelopes dobrados, rasgados, feridos de morte na dignidade de quem os enviou, para desespero de quem os recebeu em tão deplorável figura. Piores ainda os que disputavam o espaço com as ferozes investidas dos hipercolossos da distribuição nacional, nas caixinhas dos saloios sem pachorra para desiludirem os gaiatos distribuidores de publicidade com o mui poderoso autocolante amarelo.

Mas do lado de fora da porta de entrada o miraculoso papel não se via, pelo que todos os condóminos acabavam por partilhar o desconforto de uma bem provável alvorada a toque de campainha, às dez e picos da madrugada de um domingo qualquer. Depois, a voz ansiosa e esbaforida de um adolescente trabalhador. Publicidade!
Uma pessoa enerva-se tanto com a maçada que já nem consegue ir dormir outra vez. Era o que lhe acontecia vezes sem conta, como o testemunhavam os magotes de folhetos, panfletos e alegados jornais com notícias fresquinhas da secção de congelados ou outra em promoção. Pizzas, restaurante chinês com entlega ao domicílio, amostras gratuitas de champô que explodiam mais tarde no fundo de um caixote de papelão, esmagadas pelo peso de tantas outras coisas deixadas para ver depois.

Uma mão cheia de papelada, mais as contas do costume e cartões de serralharias ou de magos africanos capazes das maiores habilidades com búzios, alinhamentos de planetas ou baralhos de tarot. Nem uma carta digna de se ler, enviada por alguém pela simples vontade de dizer coisas a outra pessoa.

Que se lixe.

Entrou no elevador a sós e deixou-se ascender em silêncio, encantado pela privacidade daquele momento que esbanjaria em caretas idiotas para o espelho. Uma nesga de loucura na postura sóbria de um condómino exemplar.

Chave à porta, sempre na dúvida de encontrar em casa uma visita inesperada, um ladrão em flagrante delito, encurralado e perigoso, exageradamente inoportuno. Regra geral, isso não acontece. Tudo na mesma como de manhã, à saida.

Casaco no bengaleiro, ligar o candeeiro, onde param as pantufas e comandar a televisão. Vozes que fazem companhia numa casa vazia, fonte de luz intermitente, agitação. O mundo em nossa casa, dentro da caixa que o mudou. Pura tecnologia, diversão.

Restos do jantar anterior, requentados em segundos por magia, fustigados pelas microondas invisíveis que alguém inventou para benefício do anónimo cidadão.

Tamborilou na superfície esmaltada para entreter a curta espera, enquanto trauteava o refrão idiota de um anúncio popular. O temporizador pôs um fim à insuportável cantoria, anunciou a refeição. Sentou-se, folheou a revista e ruminou uma abordagem profunda à sucessão de desagradáveis acontecimentos que lhe povoaram o dia. Quase sem dar por isso, comeu.

Dirigiu-se à sala, abriu o correio de papel para ordenar as contas por data. Ligou o computador. Montes de mensagens a entrar. Montes de lixo electrónico, camuflado na boa intenção de um reencaminhamento idiota de algo absurdo e boçal por parte de um amigo sem nada de novo para nos dizer. Muita publicidade ou parecido, coisas de que não se precisa, palavras e imagens atiradas à toa pela máquina sinistra de reprodução incassável de folhetos digitais. Analogia que se perdeu num envelope manuscrito que o tempo deixou por lamber até o potencial destinatário já nem recordar o nome do remetente que entretanto abdicou.

Nariz colado no monitor, cursor que percorre a superfície rectangular de uma caixinha parecida com a outra, a que terá mudado as nossas existências. Para pior, bem medidas as consequências.

No final, desligado o interruptor, a mesma sensação de vazio. São cada vez mais parecidos, estes modernos dispositivos de comunicação global.

Os impulsos eléctricos percorrem a linha, fio a pavio, como carruagens vazias de um comboio suburbano em dia de feriado municipal. De um lado para o outro, para cumprir calendário. Para nos atormentar com outro paradoxo letal: o diálogo mirra na mesma proporção em que a sociedade se atafulha em equipamentos para facilitar a conversação. A pessoa dá consigo numa sala povoada de telefones fixos e móveis, internet no computador, mais a rádio e a televisão. De repente, percebe-se só no meio da parafernália. E sente-se estúpida, a pessoa, para além de solitária. Constatação cruel, às tantas da matina, quando a noite, como a vida, já não nos permite voltar atrás, rebobinar o tempo perdido que se escoou a adivinhar o que se passaria com as coisas feitas de uma maneira alternativa, ideal.

Mas qual?

Sentiu-se encurralado no raciocínio e algo na sua mente estalou. Assim como uma articulação, quando se força em demasia a sua flexibilidade natural. Deixou então de se concentrar noutra coisa que não no fumo do cigarro que deambulava pela casa, ao sabor das correntes de ar. Decidiu seguir-lhe o rasto, ver por onde se esgueirava.

Não parou de o seguir, já o vento dissipava a fumaça sobre o parapeito da sua janela no décimo-quinto andar. 

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