GÊNESE 19
Márcio Benjamin Costa Ribeiro

Senti a claridade roçando meus olhos sem muita sutileza. Tinha de comprar umas cortinas ou coisa parecida para aquelas janelas. Urgentemente. O sol insistia em me acordar, mas as bebidas que tomei na noite passada, além de outras coisas menos permitidas por lei, me seguravam na cama. Virei o rosto contra a luz, mas não consegui me livrar do sol. Grande surpresa. Nem eu nem a Terra. Mas a Terra não tinha tomado um porre na noite anterior. Olhei de relance para a janela e vi um homem sentado. Na verdade não era bem sentado. Estava agachado. E tinha asas. Eu já tinha ouvida falar de alucinações retardadas antes. Já tinha mesmo passado por elas. Mas, até agora, limitavam-se a coelhos escovando os dentes na pia.

O homem me falou algo. Ele não abria a boca, mas eu podia ouvi-lo claramente em minha cabeça. Falava algo sobre liberdade e redenção. Sobre uma mensagem. Sentei na cama e passei as mãos no rosto, esfregando os olhos rapidamente. Mas ele continuou lá, fazendo uma sombra no apartamento. Como uma estátua de prédio. Perguntei o que ele queria comigo. E ele me falou de liberdade. E de entrega. Lembrei da velha que morava no apartamento embaixo do meu, e lhe disse que entrasse. Uma vez tinha trazido algumas moças para uma festinha e a safada ligou reclamando. Não dei muita bola. Depois bateram na porta com força. Era a polícia. Usei minha lábia , alguma grana e eles foram embora. Mas prometeram ficar de olho em mim.

Pedi mais uma vez para entrar e ele me falou de novo em entrega , e em liberdade. E em uma nova vida. Só então eu entendi.

Batidas na porta me acordaram dos pensamentos. Era a velha. Mas também era a polícia. E desta vez não pareciam muito dispostos a encarar um suborno. Falavam algo sobre uma denúncia.

Olhei assustado para o homem na minha janela e ele me falou sobre a liberdade uma última vez. Eu me aproximei. Eles batiam com força na porta. Chutaram com firmeza e o trinco arrebentou. O homem de asas virou-se e pulou. Corri, apoiei o pé no parapeito e dei um impulso, buscando o céu. Mas eu não voei. Na queda o vi subir, meio ofuscado pela luz do sol. 

Eu não voei. Talvez não estivesse buscando as razões certas, talvez apenas não estivesse pronto. Senti as costas batendo na calçada e uma umidade meio morna me envolvendo. Eu não voei. Mas não sei porquê. 

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