O GUARDIÃO
Paffomiloff

Quando o Padre Aquino, cinco minutos atrasado para a missa, defrontou-se com a igreja vazia, sentiu a lambida da culpa dar lugar à mordida da revolta.

“Cadê todo mundo?”, perguntou-se. “E onde diabos está o sacristão?”.

“Mesmo que quisesse, o velho Damião não poderia ter ido longe, talvez tenha esquecido de si mesmo em algum canto”.

“Mas todo o mundo se esqueceu da missa? Impossível!”.

Aquino cruzou a nave da igreja até a porta de madeira lavrada, a tempo de ver o coroinha chegando, esbaforido, acompanhado bem de longe pelo encarquilhado sacristão, que imprimia uma velocidade acima da qual seu corpo suportaria em condições normais.

- Padre! As Luzes vieram... – dizia o coroinha de rosto corado, quando parou, ao lembrar de abaixar a cabeça para beijar a mão de Aquino com seus lábios macios – Perdão... Sua bênção, padre.

- Deus te abençoe – respondeu Aquino mecanicamente, fitando a nuca suave do coroinha – fale das tais Luzes.

- Elas têm aparecido por todo esse mundo de Deus... – o coroinha era um dos poucos da cidade a ver televisão – passou no jornal de domingo...

- As luzes que vêm dos céus? – uma sombra apagou o olhar de Aquino.

- Em todos os países...

Damião finalmente chegara, gemendo. Sem cerimônias, interrompeu o coroinha:

- As Luzes padre... – tossiu – se juntaram e abriram uma espécie de... como é mesmo o nome?

- Janela – lembrou-lhe o coroinha.

- Isso – Damião continuou – uma Janela na praça da cidade.

Os olhos azuis do coroinha faiscaram:

- Uma janela para outra realidade, padre.

Aquino engoliu em seco e apanhou o cajado, pendurado ao lado das chaves do carro.

- Isso é o que vamos ver – rosnou o padre.

* * *

Vastos campos de trigo emolduravam a cidade, tão pequena que nem podia ser localizada por satélite. A única televisão fora trazida de carro. Uma outra, encomendada pela prefeitura, não chegara por que o motorista do caminhão passara direto pela trilha de acesso à cidade, achando que era apenas um buraco na mata.

A praça central era tão diminuta que não puderam construir a igreja lá. Por isso todos estranharam que as Luzes houvessem encontrado a cidade e instalado na praça a fenda luminosa, conhecida como Janela.

Não havia morador que não estivesse olhando, mesmerizado pelo véu de luz, atrás do qual se podiam vislumbrar sombras indistintas – talvez pessoas. Nem percebiam a coluna de poeira que se erguia da estrada que vinha da igreja.

Pequenas luzes esvoaçavam em torno da janela.

- Há uma dessas em cada cidade do mundo – disse o operador de rádio-amador, homem mais informado das redondezas.

- Dizem que as pessoas ficam curiosas e as atravessam – inventou o barbeiro – já levou um quarto da população mundial – resolveu florear – talvez mais.

- É verdade – confirmou o rádio-amador – mais da metade de todas as pessoas deixaram nossa realidade.

- Não disse? – sorriu o barbeiro, mais surpreso que todos, por ter acertado um palpite.

Todos abriram passagem para Menelau, homem temido na cidade, responsável pelo levante comunista de 74, quando atirara pedras na janela da prefeitura, até o elástico do estilingue rasgar, forçando o terrorista a voltar para o boteco.

- Vou atravessar agora mesmo – decidiu Menelau – lá os trabalhadores devem ter algum direito.

- Mas... – a mãe do coroinha segurou-lhe a manga da blusa – e se for um mundo sem Deus?

- Então não seria outra realidade – rebateu Menelau, desvencilhando-se para sumir através do véu luminoso.

- Espere – disse o Sr. Simão – vou também!

- Homem besta! – ralhou a Sra. Simão, com seu habitual mau humor – Sempre com essas idéias idiotas!

Simão continuou avançando, sem lhe dar ouvidos.

- Já disse, velho ridículo – continuou a esposa – nessa coisa luminosa eu não entro!

- É com isso mesmo que eu estou contando – respondeu baixinho, fazendo menção de passar pela janela.

Uma buzina rouca chamou a atenção de todos, que se voltaram para ver a caminhonete do padre Aquino avançando impávida na direção do espantado Simão, parado com a perna no ar, a meio caminho da janela.

Erguido sobre a caçamba, o gracioso coroinha brandia uma vassoura no ar, como um cruzado indo para Jerusalém. A seu lado, o pobre Damião, também com uma vassoura, tentava segurar-se como podia na barra de suporte, para não ser jogado na estrada pelos saltos do veículo, que freou tão próximo a ponto de fazer o deslocamento de ar arremessar Simão nos braços de sua iracunda esposa.

Aquino saiu da caminhonete como a ira de Deus sobre a Babilônia, postando-se entre o Mundo e a Janela, gritando:

- Vocês estão loucos?

- Ele está – observou a Sra. Simão, sacudindo o marido como um pano de chão.

O coroinha postou-se graciosamente à direita do padre, enquanto Damião fazia o que podia para chegar à esquerda, mas tropeçou e bateu com o nariz no chão, o que reduziu um pouco a dramaticidade do momento.

- Porque desejam outra realidade? – Aquino teria de improvisar o sermão – em que outra realidade gostariam de morar? Não somos felizes aqui?

Seis pares de mãos tapavam a boca de Simão, alguns aldeões silenciaram-se e Emengarda, que tinha câncer, mas não sabia, sufocou uma lágrima de dor.

- Em que outra realidade o tempo estaria parado, como nessa vila, onde o passado e o futuro são a mesma coisa e o trigo nasce como ouro da terra? Digam o que pode ser melhor que a vida simples que Deus sonhou para seus filhos? – apontou a Janela – atrás dessa coisa, pode se esconder um mundo de perdição, pecado... mulheres pecaminosas com roupas escassas...

Aquino sentiu que o discurso estava acendendo luzes nos olhares de alguns homens, por isso julgou que o tempo de negociação havia terminado.

- Vão para casa! – ordenou – não há nada aqui para vocês.

Estalou os dedos e tanto o coroinha quanto o sacristão ergueram suas vassouras, espantando as luzes.

- Garantam que elas não voltem – murmurou.

A brigada improvisada saiu no encalço dos inimigos que flutuavam sobre os campos de trigo. Aquino se deteve nos movimentos vigorosos do coroinha, iluminado pelo sol alaranjado do entardecer, que fazia o feixe de piaçava assoviar no vento em trajetórias semicirculares, evitadas com facilidade pelas luzes brincalhonas.

O sacristão tentava fazer o mesmo, tropeçando e caindo mais do que o médico da vila autorizaria. “Mas a causa vale o sacrifício”, pensou Aquino. “Em que realidade o futuro seria um garoto jovem e carinhoso e o passado um velho obediente e esquecido?”.

Agora os aldeões caminhavam, fingindo que não olhavam para a janela, diante da qual o vigoroso padre Aquino postava-se com seu cajado ameaçador, tão temido pelos cães da vila, que urinavam na porta da igreja, como se ela já não fosse território de outro.

A noite chegaria em breve, com sua escuridão furtiva.

“Inevitável”, sabia o padre Aquino, com os dentes cerrados de ódio, “mas retardável”.

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