MARÉS DA MENTE
Beto Muniz

 
 

As corridas, brincadeiras e movimentações foram interrompidas pelo sinal estridente que marcava o final do recreio. A sirene ainda soava quando a menina surgiu pela esquina do tapume que cercava a construção. Segundos depois, outra aluna surgiu por detrás da primeira que interrompera a pressa para acariciar o joelho, como que limpando a pele ralada. A aluna empurrou a primeira pedindo urgência nos gestos. Saltaram o pequeno cercado que limitava o acesso às obras e, de mãos dadas, atravessaram o pátio numa breve corrida. Alcançaram o corredor interno do pavilhão escolar, crentes que não havia testemunhas da peraltice. O diretor, homem severo, não se deu ao trabalho de interromper suas atividades, apenas acompanhou com os olhos as pequenas sumindo pela porta do sanitário feminino. Tinha certeza que terminado o turno de aulas poderia investigar os motivos que levaram as alunas ao pavilhão escolar em obras. O motivo não poderia ser mais urgente que suas tarefas. Baixou os olhos para as folhas diante de si e, sem ler o conteúdo, recomeçou a tediosa maratona de assinaturas.

Bem antes de a sirene anunciar o final da aula os alunos já estavam a postos, prontos para debandar. Como se fosse um código para o fim do mundo o som estridente autorizou a baderna. Barulhos de cadeiras e mesas se arrastando, passos apressados, chamados aos gritos e risos tomaram conta da pequena escola municipal. O diretor interrompeu sua rotina de assinaturas, posicionou a tampa da caneta protegendo a ponta e guardou os papéis na pasta parda. Lembrou que tinha uma tarefa antes de ir pra casa e ficou perscrutando pela janela até se lembrar que a obra, interrompida, do segundo pavilhão deveria ser investigada.

Respondeu os cumprimentos de alguns professores que se dirigiam à sala de reuniões enquanto caminhava para o outro extremo do pátio. Saltou a pequena cerca limite, não havia mais ninguém a vista. A escola ganhava ares de lugar abandonado menos de dez minutos após encerrar suas atividades da tarde. O intervalo para o período noturno era de quase duas horas, tempo mais que suficiente para que a funcionária colocasse as doze salas em ordem. Mas não era esse o pensamento do homem que sem esforço transpôs o obstáculo e entrou pelo pátio interno das salas em construção. Não pensava, não sabia o que estava procurando, porém saberia assim que avistasse. Na quinta sala, uma das três que já contavam com portas, janelas e piso acabado, o diretor encontrou o que procurava. Rastro de pés pequenos marcavam o pó acumulado no corredor e se dirigiam para a porta que estava cerrada. Da direção oposta, rastros de pés, bem maiores, marcavam o chão e entravam no mesmo recinto. O coração do homem acelerou e uma angústia mal dissimulada fez correr um arrepio pela sua nuca. Afastou a porta dando passagem para luz. Vacilou antes de entrar e demorou mais que o necessário para se convencer que seus olhos enxergavam uma dança marcada na poeira. Os rastros de pés pequenos valsavam com os pés adultos. Num dos cantos da sala um resto de caixa de geladeira insinuava servir de palco para o final da dança imaginada. Faltou ar e compreensão por alguns segundos, depois tudo se fez claro.

Como se fosse um espectro, perambulou pelos seus domínios até que uma das professoras deu o recado que sua filha o esperava na secretaria. O tempo havia passado sem que ele percebesse. Seus pensamentos eram vagalhões que quebravam o raciocínio a cada nova onda, e suas suspeitas recaiam ora no zelador-porteiro, ora no professor de história, ora no professor de educação física, ora no professor substituto de matemática e até o professor Laerte estava na lista: "Afeminado? Grande falso! Mentiroso, dissimulado" - sua mente gritava entre novas e poderosas vagas quebrando a lógica. Sua única certeza era que a escola estava sendo assolada pela vergonha das vergonhas, o mais odioso dos crimes. "PEDOFILIA EM ESCOLA PÚBLICA" ele via estampando as manchetes de toda região. Desde que o circo se acabara em cinzas, e o proprietário acusara o filho do prefeito de patrocinar o show pirotécnico (versão logo abafada), que o nome da cidade não corria o mundo. 

Fazia mais de cinco anos que o comboio se perdera nas estradas do interior e chegara atrasado para o rodeio anual. Mesmo com as festividades começando na noite da chegada, o proprietário resolveu armar o espetáculo. Um fiasco. Sem público a lona ficou abandonada nos três dias de festividades e o prefeito se recusou a cobrir um terço dos gastos como havia combinado. Após inúmeras discussões entre o prefeito e o dono do picadeiro o fogaréu foi mostrado em todos os jornais da região. Os poucos artistas que ficaram sem rumo, ou não tinham aonde ir, foram acolhidos pela generosidade dos munícipes, representada pela súbita manifestação solidária da prefeitura. O zelador da escola era o ex-mágico iniciante que abandonou a possibilidade remota de fama em troca de emprego fixo e casa. Ele e a esposa, ex-faz-tudo-de-circo e atual merendeira-arrumadeira, moravam no terreno da escola e trabalhavam os três períodos sem reclamar horas extras. O anão também aceitara a oferta municipal e desde então morava nos fundos da prefeitura. Em troca do minguado salário cuidava da praça, dos canteiros em frente à prefeitura e das poucas gramas e flores públicas. O malabarista aceitou o cargo de vigilante e motorista até que foi convidado a prestar concurso na policia militar. Foi incorporado e destacado para a cidade vizinha prometendo retornar como sargento. Duas moças o esperam e enquanto sonham com o casamento, vivem às turras como se faltasse homem. Se faltasse, a ex-trapezista não estaria casada com o gerente do Banco do Brasil. Coisas miúdas se comparadas às tormentas quebrando as teorias formuladas na mente do diretor. Todos seus pensamentos convergiam para a lembrança da menina acarinhando o joelho ralado antes de pular a cerca.

Durante a refeição o perturbado pai de família ruminava suas alfaces disfarçando a agonia que latejava em seu peito. A noite inteira buscou culpados e soluções imediatas para o crime que ocorria em seus domínios. Armou estratégias, flagrantes, punições, vinganças e nada lhe pareceu suficiente. Pensou em chamar a policia, em arrancar a confissão das duas meninas, em matar o desgraçado que maculava suas crianças, ultrajava o nome da escola, enlameava uma vida toda dedicada ao ensino. Não dormiu mesmo depois que se decidiu por fazer justiça com as próprias mãos. Concluiu que após consumar a punição seu nome e o da escola estariam a salvo e vingados. 

Pela manhã sentou-se diante da pasta parda e da caneta fechada sem, no entanto, continuar a tarefa do dia anterior. Seus olhos dominavam o pátio largo e longo separando o prédio escolar do prédio ainda em construção. O projeto todo tinha a forma de 'U' com a abertura voltada para o portão de entrada. De um lado o pavilhão com doze salas de aula funcionando e sanitários. No extremo oposto aos banheiros, a sala de reuniões, de diretoria e almoxarifado formavam um 'J' com a cozinha e o refeitório. Coladas ao salão de refeições, mais oito salas de aula em construção fechavam a segunda perna do 'U'. Ninguém passava de um pavilhão para o outro sem que o diretor visse. E ele estava atento. No bolso do paletó a arma carregada esperava a mão direita do seu dono.

Durante dois dias seguidos nada escapou dos olhos atentos. Nenhum aluno, nem aluna, nem professor ou qualquer ser vivente ultrapassou os limites do pátio em direção à construção. No sábado ele desculpou-se com a família e marcou plantão. Era tradição o futebol no pátio da escola, as meninas vinham acompanhar os jogos e era como se o sábado inteiro fosse decretado recreio. A janela da diretoria se fechou quando o último aluno saiu pelo portão e o zelador com sua esposa começaram a recolher o pouco lixo. 

Domingo foi dia de mutismo, de semblante fechado, de compenetração diante da televisão desligada. Na segunda-feira o homem estava em desespero, seus pensamentos assemelhavam-se ao mar revolto, considerava a hipótese de interrogar as meninas em busca do agressor, mas o que perguntar? Como chegar nas respostas que precisava? Deixou passar mais um dia e na terça- feira convocou as duas pretensas vítimas a comparecerem em sua sala. Dois rostinhos apreensivos, guardando olhos úmidos, chegaram dispostos a confessar quaisquer faltas. Diante da pergunta afável solicitando os motivos que às levaram a ultrapassar os limites do pátio e invadir o canteiro de obras, os rostinhos inocentes se iluminaram. 

A resposta era que três semanas antes uma gata havia dado cria numa das salas. Lindos gatinhos, mas a mãe havia se mudado com as crias e, naquela quarta-feira, as meninas quiseram conferir se a mudança era mesmo definitiva. Pelo jeito era. O diretor tornou à sisudez de hábito, porém sem coragem de perguntar sobre o crime hediondo que imaginara. Limitou-se a proibir o retorno delas na área em obras e dispensou-as. Sentiu certo alívio e até guardou a arma na gaveta, considerando-se um estúpido. Mas em seguida a lembrança das marcas de pés pequenos e grandes, envolvidos num ritual dançante, voltaram a encapelar sua mente. A nau ainda não estava ancorada, o papelão no canto da sala seria prova de que sua escola servia de alcova. Não teve coragem de pedir que o zelador armasse campana, o homem tinha suas tarefas normais que tomavam todo seu tempo. Achou melhor não se comprometer com um pedido desse. Corria o risco de fazer novo papel ridículo. Decidido a resolver sozinho o mistério, preparou-se para vascular o local no final do turno.

Bem antes de a sirene anunciar o final da aula os alunos já estavam a postos, prontos para debandar. Como se fosse um código para o fim do mundo o som estridente autorizou a baderna. Barulhos de cadeiras e mesas se arrastando, passos apressados, chamados aos gritos e risos tomaram conta da pequena escola municipal. O diretor interrompeu sua rotina de leitura e apontamento de dados, posicionou a tampa da caneta protegendo a ponta e guardou os papéis na pasta parda. Lembrou da tarefa que tinha se proposto e ficou olhando para o pátio vazio. 

Durante mais de meia hora ficou em dúvida se vasculhava as salas em construção ou deixava para o dia seguinte. A merendeira, que no final dos turnos assumia o cargo de arrumadeira, terminou seu trabalho e voltou para o refeitório. De lá saía para os fundos da escola onde morava com o marido. Este já se posicionava diante do portão e preparava-se para receber os primeiros alunos do turno da noite que chegavam mais cedo para aula de educação física. O zelador ficaria ali por mais de hora. O diretor pensou que deveria aproveitar o resto de luminosidade natural e olhar os vestígios de rastros sob nova ótica. Pode ser que um casal de alunos do turno da noite estivesse cabulando aula para namorar. Melhor seria conferir o lugar antes que escurecesse de todo.

Perdeu alguns minutos guardando objetos e considerando adiar novo papel ridículo, depois decidiu por encerrar o assunto e atravessou o pátio. Cumprimentou alguns alunos, o professor de educação física e, como se fosse fazer vistorias de rotina, pulou o cercado para sumiu por detrás dos tapumes. Entrou no corredor interno e foi olhando sala por sala. Como da outra vez, pode perceber o rastro de pés pequenos entrando na quinta sala. Sorrateiro, aproximou-se da porta e ouviu ruído dentro do recinto. Com o coração acelerado colocou a mão no bolso vazio se maldizendo por deixar o revólver na gaveta. Não era um covarde, era prudente! Tal qualidade fez com que espreitasse pela fresta da janela. Qual pônei servil, o anão, que nas tardes de terças e sextas cuidava da grama e dos canteiros da escola, era cavalgado pela mulher do zelador. O diretor ficou algum tempo espiando a cena sobre o papelão de geladeira e então, sorrateiro como chegara, tirou os olhos da dupla e afastou-se. Nos mares de sua mente a nau atracou ao cais ao mesmo tempo em que o sorriso brotou em seus lábios.

Na terça-feira seguinte os minutos passavam, o jardineiro podava a grama e o diretor calmamente aguardava o final do período da tarde, dentro de sua mente o mar se encapelava. Guardado na pasta parda, um despacho, sem assinatura, estabelecia que os alunos se tornariam responsáveis pelos jardins da escola como parte do programa educacional. Tão cedo não seria assinado.

 
 

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