TRÊS DA MADRUGADA
Carlos C. Alberts

Quase três da madrugada. A estrada deserta. Lisa. Reta. Floresta ladeando. As leves corcovas do planalto não diminuíam a velocidade. Se não fosse pela altura em relação ao solo, dava a sensação de estar dirigindo um carro de passeio. Dos mais potentes.

Mais meia hora. Sem sono. Nem cansaço. Mesmo depois de mais de sete horas de direção. Tava rebitado. Tinha tomado quatro comprimidos. Evitava usar. Mas tinha que chegar mais cedo, desta vez. Carga especial. Flores. Leves. Mas a carreta para levá-las, pesava. Diferente dos baús frigoríficos, freezers ambulantes. Era mais como uma imensa geladeira. Menos frio, mas muita umidade. Botões chegam como quando foram colhidos. 

Guapiara – 5 Km

Apiaí - 56 Km

Olhando a placa, quase sentiu vontade que fosse mais longe. Aquilo, sim era caminhão. Mercedes Benz. A marca já bastaria. 450 cavalos. Ar condicionado e direção hidráulica. 

Foi quando a viu. Ao lado da entrada de Capinzal de Cima, em frente à casa velha. Na beira da estrada. Fazendo sinal de carona. 

Diminuiu a velocidade. Parou. Abriu a porta. Um vento gelado entrou na cabine.

“Oi, moço. Vai passar por Apiaí?”

”Estou indo para lá. Pode subir”

Sorridente, entra e senta. Vestido curto. Bem curto. Botas até os joelhos. Bolsa. Segurando um véu. Tudo branco. Muita maquiagem. 

Notando o olhar dele, afasta os cachos castanhos e, simpática, explica.

“Vou me casar hoje”

“Ah”

Achou estranho o horário. Mas não falou nada. Mais estranho era o tipo de roupa da noiva. Parecida com a que sua esposa usara, quando casaram. Em 73.

“A moda vai e volta, não é?" 

Ela o olhou como se ele fosse um marciano.

“Como assim?”

“Nada, não”

Achou melhor não entrar em um assunto que não dominava.

Depois de algum tempo, olhou para ela e notou que chorava. Ficou penalizado. Notou, também, uma mancha vermelha no vestido, abaixo do seio esquerdo. Como não percebera antes?

“Está tudo bem?”

Ela virou-se. A maquiagem tinha escorrido um pouco. Por causa das lágrimas. Dava um ar de grande tristeza. 

“Não está. Mas vai ficar. Eu quero tanto me casar, entende?”

Ele olhou para a estrada e não disse nada. Não saberia o que dizer. Não era muito bom de conversa. Esta era uma das razões de gostar tanto de sua profissão. Quase sempre sozinho. 

Ponte sobre o Córrego Negro. Divisa de Município. Guapiara-Apiaí

Ao ver a placa e a ponte, falou, para tentar animá-la:

“Pronto, já estamos chegando”

Quando o virou a cabeça, sorrido, sentiu o sangue lhe gelar. A noiva tinha desaparecido. Diminuiu a marcha e olhou o beliche, atrás dos bancos. Não estava lá, também. 

Parou o caminhão, desceu e verificou a porta do passageiro. Trancada por dentro. Voltou para a cabine e saiu daquele lugar o mais rápido possível. 

Chegando à cidade, seguiu direto para o depósito de flores. Desceu apressado do veículo e foi até o escritório. Não havia ninguém. Deviam estar no bar em frente. Foi até lá. Encontrou o gerente de expedição, Tenório, e os carregadores, tomando um cafezinho. 

“Sempre no horário. Toma um café com a gente, Serjão?”

Saudou Tenório, com um sorriso. Era um cara legal. Sempre pra cima. Apesar do olhar triste.

“Tenório, você não imagina o que me aconteceu”

E começou a contar seu encontro com a noiva. Enquanto contava, a face do Tenório, modificou-se. Sumiu o sorriso. Olhos mais tristes. Começou a olhar o chão. Os carregadores também olhavam o chão ou o interior dos seus copos de café. Quando terminou, Tenório estava bravo.

“Você ta tomando rebite demais. Todo mundo sabe que acaba tendo alucinação. Vê se te emenda, Sergio. Senão vou ser obrigado a falar com o patrão. E você sabe que ele acaba falando com o seu. Aí já viu, né? Vamo, gente. Temos um caminhão pra carregar. E, você, Sérgio, toma seu café e deixa de bobagem. A gente te espera no barracão”

Estava atônito. Nunca vira o Tenório daquele jeito. Mesmo se fosse alucinação por causa do rebite, aquilo não era jeito de falar. E não tinha sido alucinação nenhuma. Aconteceu mesmo.

Pediu um café com leite. 

O dono do bar veio lentamente trazendo o copo. Entregou-o e falou devagar.

“Num repara no Tenório, não. Ele não gosta que lhe contem isso que o senhor falou. Essa não foi a primeira vez. Nem vai ser a última”.

“Outras pessoas já viram a noiva?”

O homem disse que sim e contou uma historia. Uma historia impressionante.

No início da década de 70, Laurinha, uma moça bonita, decidira se casar. Encontrara o homem que julgava ideal. Trabalhador, bonitão, um bom emprego e, mais importante, meio estranho. Cabelos compridos. Roupas bem coloridas. Ouvia umas músicas estrangeiras estranhas. Diziam, até, que fumava maconha. 

Para Laurinha, que não suportava a pasmaceira daquele lugarejo, era como se um pouco do resto do mundo tivesse chegado. Apaixonaram-se quase imediatamente. Com poucos meses de namoro, o rapaz pediu para Laurinha ir morar com ele. Mesmo sendo mais moderninha, a moça sempre sonhara com um casamento na Igreja, com véu, grinalda e festa. O namorado não gostava muito dessas coisas, mas concordou com Laurinha. Com uma condição: ela deveria usar um vestido de noiva bem moderno. Até meio chocante. Nada de longos com caudas quilométricas. Laurinha adorou e até o namorado começou a gostar da idéia. Ficou curioso. Como ficaria sua noiva? Ele queria ver.

Não que ela fosse supersticiosa, mas ver a noiva antes do casamento era coisa séria. De tanto ele pedir, na véspera do casório, ela concordou. Ele a buscou de carro e a levou até sua casa, que ficava na estrada, no trevinho da entrada de Capinzal de Cima. Carro é maneira de dizer. Um jipe americano, muito maltratado, que ele estava reformando. 

Ela se vestiu de noiva para ele. Depois se despiu. Uma espécie de despedida de solteiro a dois. Quando perceberam, já era madrugada. Ela precisava voltar. Passar o vestido. Fazer as unhas. Refazer a maquiagem. 

O jipe não pegou. O moço tentou de todo jeito. Não deu. Ela precisava ir. Como estavam mexendo no carro, viram o caminhão chegando. Laurinha saiu correndo e postou-se junto à estrada, fazendo sinal de carona. O caminhão parou. A porta se abriu e ela subiu. Sorrindo. O noivo não gostou muito da cara do motorista. Parecia com sono. Mas era tão perto. Beijaram-se e caminhão arrancou. 

O motorista, infelizmente, não tomava rebites. Com a estrada reta e horas de trabalho nas costas, cochilou. Não viu a ponte sobre o Córrego Negro. O caminhão saiu do rumo, ultrapassou a balaustrada e caiu no ribeirão. O estrago não foi grande. A altura não era muita. No entanto, com o choque, Laurinha foi arremessada em direção ao painel. A tampa do porta-luvas tinha se aberto e penetrou no corpo da moça. Logo abaixo do coração. Causou uma grande hemorragia interna.

O namorado ouviu o estrondo e correu para o local do acidente. Encontrou Laurinha ainda com vida. Ela estava chorando. Quando a amparou e disse que tudo estava bem, ouviu de sua amada:

“Não está. Mas vai ficar. Eu quero tanto me casar, entende?”

E morreu. 

Depois disso, sempre que passa um caminhão perto da antiga casa do noivo, no horário exato, às 3:00hs, Laurinha aparece pedindo carona. Poucos param.

“Nossa, que história triste. O noivo deve ter se desesperado. 

O dono do bar pega um novo copo de café com leite. 

“No começo ele ficou mesmo desesperado. Depois se acalmou. Nunca casou. Ele é um cara muito boa praça. O senhor o conhece. É o Tenório.

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