QUESTÃO FILOSÓFICA
Doca Ramos Mello

A vaca fora vista rumando para o foco da questão em pauta. Fora vista com todas as letras e, agora, a ira popular se voltava contra eles proveniente de um povo que, sempre tão passivo e generoso, dera para aprender lições desarrazoadas de cidadania, uma coisa muito inconveniente, que fazer?

Escarafunchar os miolos na busca por algum culpado consistente, um bode qualquer capaz de segurar as pontas e botar a casa em ordem, ora essa. O populacho não podia ser descuidado, apesar de seu mau cheiro, sua ignorância, sua chatice, suas cobranças, sua pobreza endêmica, seu jeitão chinfrim de ser e haver nessa vida porca de ralé, porque, afinal, dessa gentinha trágica dependia o bem-bom dos "sujeitos" ora em confronto na procura por umas boas costas largas...

Talvez fosse interessante citar Mr. FMI, senhor dos nossos anéis e nossos dedos, estrangeiro metido a botar a colher na sopa alheia, travestido de benemérito, porém um cruel cobrador dos benefícios oferecidos para, digamos, "ajudar" os necessitados. Daquele tipo que dá com a mão direita e tira com as quatro patas, todo mundo já sabe, se bem que os "sujeitos" corriam o risco de ser cobrados em relação à promessa feita de "endurecer o jogo" com o referido cavalheiro, de modo que a idéia nascia meio morta... 

E que tal o "Esporte Clube Juros Altíssimos"? Associação egoísta, o povo sempre alimentou forte rancor contra ela, não aprecia o sistema tático da agremiação e considera o time todo ladrão, sem-vergonha, explorador. Neste caso, existe a chance de se envolver os bancos e os banqueiros com relevância na questão, aproveitando para exaltar os ânimos contra eles, que chupam o sangue do povo e não pagam impostos. Se não recolhem impostos... Isso não poderia resultar num efeito contrário, tipo feitiço contra feiticeiro, caso o pessoal se perguntasse quem faz as leis? Hummmmm...

A natureza tropicalista! é isso. Muito calor, cerveja gelada, homens e mulheres desnudos por tudo quanto é canto do país, o lado exótico e sensual exacerbado de um povinho festeiro demais, o comentado pendor nacional para a malemolência... Melhor, não. Poderia passar a impressão de desapreço pelos orgulhos locais, Carlinhos Brown se levantaria contra a elite repressora, Martóx (Marta, a rainha do botóx) discutiria nossos padrões sexuais, a ministra de não-sei-o-quê diria que o sistema de cotas para negros nas universidades é um avanço, e aquele deputado da situação abriria a boca larga com a maior cara-de-pau para dizer que "votara contra tudo porque, na época, era oposição..." (Aliados desse tipo só atravancam o progresso!)

Que tal um sujeito meio mexicano, o senhor El Niño, guapo rapaz desordeiro, que gosta de subverter as estações do ano, montar furacões só de sacanagem, derrubar grossas tempestades onde nunca ninguém jamais viu uma gota d'água antes, tem elemento mais destruidor? Quem sabe se pudesse arrastar a culpa até a seca e, de quebra, arrumar verba para uns açudes, um ranário... Não...?

Boa receita mesmo é jogar o saco de batatas nas costas dos antecessores, moda de absoluto sucesso na praça. Depois, elaboram-se discursos compungidos, fazem-se caras de grande sofrimento e, helás! Promessas! Dobradinha infalível, desancar com a herança recebida e prometer céus e terra sempre reverte em produto final irretocável, um aval para bons tempos de fartura e gozo, o paraíso sonhados das vacas gordas. E por falar em vacas... Para onde foi a vaca mesmo? E de quem é a culpa?

Pronto, resolvido. O negócio é com a gripe asiática, o vírus é mutante e não conhece preconceitos, de modo que vai grudando em todo mundo sem esquentar a cabeça, olha o estrago que fez na China, a chinesada obrigada a sair pelas ruas à moda de Michael Jackson, gente morrendo aos cachos, cientistas aparvalhados! A Sars vai entrando sem pedir licença, alô, adoro comida chinesa, canadense, coreana, espanhola, tupiniquim, o que vier eu traço, saiam da minha frente, botem as barbas de molho e a boca debaixo da máscara, eu não dou moleza, quem avisa amigo é, rá, rá, rá... Uma doença dessa era bem capaz de levar a vaca ao rumo tão temido, a bicha não teria forças para dizer não a um mal tão abrangente, coitadinha, lá foi ela, com o olhar perdido no horizonte (devia ser a febre alta), as passadas pesadas, ruminando idéias virulentas, premissas insondáveis, conjecturas dissonantes, logo ela, sempre tão plácida e cordata!

Agora, olha o chato do povo aí, querendo saber como é que vai ficar, oh nega... Oh, céus!

Zum-zum-zum no plenário, confusão. A coisa só se acalmou porque um dos "sujeitos" aquietou os corações presentes: "Gente, já localizei o boi e ele me prometeu um pronunciamento sobre os rumos da vaca, ainda hoje, às três horas em ponto, sosseguem!" Claro, o boi, finalmente e em pessoa, fiel companheiro da distinta, quem melhor para esclarecer os fatos e provar que não era bem assim? Ai, os pessimistas são a praga da humanidade...

Assim, os "sujeitos" se tornaram mais confiantes, e foram relaxar a cabeça na tradicional academia de tênis, receberam massagens terapêuticas, fizeram compras nos shopping, tomaram aperitivos, almoçaram seus cardápios franceses em restaurantes badalados, deram entrevistas, apareceram na tv, riram e balançaram as panças, a despeito das sombras nos descaminhos da vaca...

Duas e trinta. Duas e trinta e sete, conferiu um "sujeito", no seu rolex de ouro. Lotado o plenário. Duas e quarenta e um. Dez para três. O povo se comprimindo e berrando. "Credo, como essa gente é feia e mal-educada!", comentam os "sujeitos". Cinco para três. Quase três. "Como é, vai ou não vai?", destemperou a ralé apinhada no local. Três horas! "Olha o boi aí, gente!", gritou a massa miserável. E o boi, solene, entrou no recinto sujo até os chifres, enlameado e triste, balançando veementemente a cabeça, a babar sem parar. Não havia dúvidas: a vaca tinha ido para o brejo. Sem volta. 

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