BUSCANDO CERTEZAS
Beto Muniz

 
 
Mamãe repetia diante de qualquer dúvida, mesmo aquelas mínimas surgidas entre vizinhas discutindo o melhor sabão para obter roupas mais brancas, que certeza absoluta ela só tinha uma: "ziém-liu éta sínie".

Ela tinha a pele escura, podendo facilmente dizer que era negra se quisesse obter vantagens em algum programa que contemplasse as minorias étnicas, se bem que naqueles tempos ainda não existia esse tipo de apartheid. O fato de minha bisavó ter sido escrava contribuiu para que mamãe tivesse pele escura, mas se os genes lhe queimaram a epiderme, o sol escaldante do cerrado foi o maior responsável pela coloração quase negra de sua cútis. Mas a cor de nossa pele nada tem a ver com minha determinação na busca do conhecimento. Herdeiro da liberdade adquirida por decreto imperial, desde a infância a minha sorte era dispor da vida como ela se apresentava: um dia após o outro. Filho único com pai desconhecido eu era arredio, desconfiava de tudo e questionava mentalmente todo gesto, bom ou ruim, dirigido a minha pessoa. O litígio mudo ganhou voz quando comecei a freqüentar a escola. Gostava de ler e fazer comparações entre a realidade lida e a realidade de fato. A despeito de minhas meias serem por demais desbotadas, a camisa do uniforme puída, os sapatos gastos, as solas rotas e os fundilhos do calção recuperados na agulha, eu tentava pensar na cor da Terra quando vista do espaço, e abrandar minhas inquietações. Porém, as pobrezas de meu único uniforme escolar não seriam percebidas lá das alturas geladas onde habitam as estrelas. O calção azul remendado por linhas amarelas, brancas ou vermelhas seria mote para gozação a meio metro de distância. Mesmo sendo bom aluno em notas, eu era o negrinho que, diariamente, distribuía olhos roxos e recebia advertências, suspensões e mais rasgos a serem costurados com linhas de sobras d'outras costuras. Mas para mamãe um remendo a mais ou a menos não era o mais importante. Importava apenas que "ziém-liu éta sínie". 

Na pré-adolescência ouvi algumas leis recitadas pela professora e ficou gravado na memória o maior fiasco já pretendido e escrito pelos homens: "todos são iguais perante a lei". A realidade mostrava uma desigualdade brutal entre eu e outros meninos. Eu pensava que se a diferença já era grande ainda sendo crianças, a tendência era crescer mais e mais até tornar imensurável quando fossemos adultos. Explicando minha lógica para mamãe ouvi dela que, fora a Terra ser redonda e azul, nada mais era definitivo neste mundo. Não retruquei. Fiquei observando-a lavar roupas, tarefa que lhe rendia algum dinheiro, e pensando que ela era a menos igual perante a lei. Essa desigualdade a tornara uma ignorante das coisas a sua volta. Mamãe não sabia ler e sua única certeza nascera via rádio, gerada pela voz chiada dum astronauta russo: "Iá vijú ziém-liu... éta sínie" ela decorou a pronúncia da frase original e a traduzia como se entendesse o idioma. "Eu vejo a Terra, ela é azul" era a palavra dum desconhecido, mas bastava para ela. Mesmo ao ser questionada sobre a sinceridade do astronauta russo, que faria qualquer declaração se esta fosse conveniente ao estado comunista, mamãe se manteve firme dizendo que a emoção primeira, confessada lá na solidão do espaço, e depois confirmada diante de milhões de pessoas, era a verdade: "Iúri Gágarin não diria que era azul se a Terra não fosse realmente azul".

Eu odiava a ignorância passiva de mamãe, pois já tinha muitas certezas e tentava convencê-la de algumas novas verdades, mas ela se esquivava com um meio sorriso e dizia para não me preocupar com ela: "eu já encontrei uma verdade que me basta, e você deve encontrar sua própria verdade". A convicção dela me parecia tão miserável diante de tudo que eu não me conformava e insistia na tentativa de lhe mostrar coisas novas. Cheguei a pesquisar se a pronúncia que ela repetia estaria correta, e descobri que "ziém-liu éta sínie" poderia não corresponder exatamente ao "a Terra é azul", como ela traduzia livremente, porque o verbo ser e estar não existia no idioma russo. Inútil. Para ela minhas descobertas pareciam não importar. Exasperava-me principalmente a sua certeza insistente de que a Terra era azul. "Filho, vê essa terra que um dia há de me cobrir? Sei que não parece, no entanto, visto por outros ângulos, sobre efeito de outras luzes, ela seria azul". Ainda com a mão ossuda estendida diante dos meus olhos, mamãe deixou a terra escorrer por entre seus dedos e me abraçou. Desse modo ela deu adeus quando insisti em vir para a capital continuar meus estudos. Pareceu-me mais uma de suas maluquices. Ela era assim, inventava frases bonitas envolvendo a cor do planeta sempre que eu brigava por uma possibilidade de futuro melhor. Minha mãe parecia saber que sua ignorância me irritava e insistia na submissão à sua única certeza: ziém-liu éta sínie!

Definitivamente ela representava tudo que eu não queria ser. E não sou. Os anos passaram, sou juiz. Metido num terno escuro estou retornando à antiga vila. Mamãe está comigo, dorme. Chorou bastante desde o início da viagem e agora recupera forças para cumprir a missão de enterrar uma irmã. Em contraste com a roupa que visto, minha pele é clara. Posso, facilmente, declarar-me branco apesar dos genes que deveriam me escurecer a epiderme. O sol não fustiga meu corpo com a mesma freqüência e intensidade que assolava na infância. Mesmo mamãe já não se expõe tanto ao sol quanto nos tempos em que, diariamente, lavava e remendava meu uniforme escolar. Também está com a pele mais clara e costuma rir quando digo aos seus netos que me parecia uma louca repetindo: "ziém-liu éta sínie". Ela, porém, nunca foi maluca. Foi a maneira que encontrou para desafiar seu filho a buscar outras verdades e certezas, construir o próprio destino. Dirijo refletindo sobre minha sorte. Sorrio. Na minha profissão devo garantir a igualdade entre todos, mas a realidade ainda me apresenta um mundo com várias tonalidades de cor. A poeira levantada pelos pneus do carro ainda parece marrom, no entanto, reconhecendo lá adiante os casebres da vila de minha infância eu concordo com mamãe e com Gágarin: YA VIZHU ZEMLIYU - ETO SINE (Eu vejo a Terra, ela é azul).

Mesmo que seja mais azul para alguns do que para outros.
 
 

fale com o autor