MELHOR MORRER DO QUE SER INFELIZ
Sérgio Galli

(ao som de Edu Lobo e Vinícius de Moraes)

Tudo azul na ilha da fantasia, quer dizer, Brasília. Naquele firmamento estelar o mundo é cor de rosa, há espetáculos de crescimento e chegar ao Paraíso é uma questão de tempo. O azul cobalto também é a cor do empíreo dos senhores do universo, senhores da guerra, senhores do mercado que reinam em Wall Street, Genebra ,Washington...

Já aqui na azul planeta Terra, aqui embaixo, onde vive a patuléia azul quase lilás luto, há muitos dramas e alguns alarmes. Aqui há pessoas de carne e osso, corações e mentes, que sofrem, amam, morrem, sobrevivem, riem, choram, exasperam-se, desesperam-se. Conflitos, discussões, debates, embates, problemas e soluções. Alegrias, tristezas, sorrisos, choros, abraços, brigas, afeto, animosidades, suor, sangue, excreções. Excrementos, gosto, desgostos, desesperanças, esperanças, fé, desencanto, santos e demônios, enfim, vida em preto e branco, vermelho, azul purpúreo.

Enquanto isso, lá em cima, no azul fantasia, as coloridas estatísticas, gráficos, tabelas, pesquisas, siglas ipca, fipe, ibge, ajuste fiscal, superávit primário, índices, cotações, cifrões, equações, a matemática dos números que maquiam a álgebra cruel dos que são apenas um número preto num relatório de páginas brancas de onde escorre uma gota de vermelho sangue.

É melhor morrer do que ser infeliz. Melhor morrer do que se aposentar.

Essa é a lógica perversa da tal reforma da previdência que apenas, nas palavras da senadora Heloísa Helena, serve para atender a agiotagem internacional e tungar ainda mais a patuléia. Para isso vale tudo, principalmente falácias como por exemplo a de que a previdência é deficitária. E o desvio de dinheiro da previdência para obras inúteis ou inacabadas? E o dinheiro, que daria para cobrir o tal déficit da previdência, que foi roubado, ou no eufemismo "apropriação indébita", que dizer, empresários recolhem o dinheiro dos trabalhadores e simplesmente não repassam para a previdência? Alguém foi para a cadeia? O dinheiro voltou para os cofres públicos? E há também a antiga manobra de jogar o funcionalismo contra o resto da população. Mas afinal, quantos são os tais que recebem altos salários de aposentadoria? O que importa é que a maioria, que é está na linha de frente para atender a população mais pobre - professores, pessoal da saúde, etc.—geralmente nas periferias, no sertão, ganha pouco, trabalha em péssimas condições e mesmo assim presta um serviço altamente necessária e geralmente desprezado. Essa gente vai ter de trabalhar mais e ganhar menos. É justo? Por trás dessa hipocrisia há uma inversão de valores, não são uns poucos que ganham muito e sim, muitos que ganham pouco. E tantas outras mentiras que se transformam em verdades uma vez que, em geral, a mídia, subserviente aos governos de plantão, simplesmente aceita sem contestar, sem investigar, sem questionar os números oficiais. 

Mas essa questão da previdência, transformada pelo governo como a salvação do País, depois de feita, teremos o "espetáculo do crescimento", é só um item das estratégias do FMI, do Banco Mundial, todos a serviços dos banqueiros e das grandes multinacionais, para atender ao Deus Mercado e ao Deus Verde (dinheiro). E assim, o céu continuará azul da Prússia enquanto aqui no inferno vermelho de vergonha tudo continua como Dante no quartel de Abrantes.
Não é razoável escrever uma crônica com citações, mas já que o próprio patrono deste sítio utiliza desse recurso, peço permissão aos leitores para cometer esse pecadilho e logo abaixo algumas citações que, creio oportunas para o tema em pauta.

Inverno de 2003
Sérgio Galli 

"A globalização financeira criou, alíás, o seu próprio Estado. Um Estado supranacional, dispondo de seus aparatos, redes de influência e meios de ação próprios. Trata-se da constelação FMI, Banco Mundial, OCDE e OMC. Essas quatro instituições falam com uma só voz - ecoada pela quase totalidade da grande mídia - para exaltar as virtudes do mercado. Esse Estado mundial é um poder sem sociedade, sendo esse papel desempenhado pelos mercados financeiros e pelas empresas gigantes, das quais ele é o mandatário, tendo como conseqüência que as sociedades existentes são sociedades sem poder. E isso não pára de agravar-se".

"A receita da General Motors é superior ao PIB da Dinamarca; a da Exxon Móbil supera o PIB da Áustria. Cada uma das cem principais empresas globais vende mais do que cada um dos 120 países mais pobres exporta. Essa firmas gigantes e globais controlam 705 do comércio mundial... Sus dirigentes, assim como os dos grandes grupos financeiro e publicitários, detêm a realidade do poder e, através de seus poderosos lobbies, exercem pesada influência sobre as decisões políticas dos governos legítimos e dos eleitos. Assim, confiscam, para seu proveito, a democracia".

"A mercantilização generalizada se traduz por um enorme agravamento das desigualdades. Enquanto a produção planetária de alimentos básicos representa mais de 110% das necessidades mundiais, 30 milhões de pessoas continuam a morrer de fome a cada ano, e mais de 800 milhões estão subnutridas."

"Em 1960, os 20% mais ricos da população mundial dispunham de uma renda trinta vezes mais elevada do que a dos 20% mais pobres, o que já era escandaloso. Mas, ao invés de melhorar, a situação ainda se agravou. Hoje, a redá dos ricos em relação à dos pobres é, não mais trinta, mas oitenta e duas vezes mais elevada! Entre os 6 bilhões de habitantes do planeta, apenas 500 milhões vivem confortavelmente, ao passo que 5,5 bilhões passam necessidades".

"As 225 maiores fortunas do mundo representam um total de mais de um trilhão de euros, ou seja, o equivalente à renda anual de 47% das pessoas mais pobres da população mundial (2,5 bilhões de pessoas!). Simples indivíduos são agora mais ricos do Estados: o patrimônio das 15 pessoas mais afortunadas do planeta supera o PIB total do conjunto dos países da África Subsaariana...."

"Guerras do Século XXI - novos temores e ameaças", Ignácio Ramonet, Editora Vozes, 2003.

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