ALMAS GÊMEAS
Rodrigo Stulzer Lopes

Seu Pedro finalmente sorriu para o espelho; o rosto enrugado era refletido pelo cristal polido. Os pensamentos voaram, naquela cabeça grisalha e calva. "Algumas dezenas de voltas em redor do Sol e vamos nos deteriorando dia após dia. Parece que foi ontem..."

Pepê tinha quatro meses de idade quando começou a desconfiar daquele bebê que via no quarto. Sua mãe notara que ele estava entendendo que era o seu próprio reflexo; não tardou a deixá-lo diversos minutos em frente ao espelho.

- Lindo bebezinho da mamãe, é isso mesmo! Este é um es-pe-lho. Serve para mostrar como você é bonitinho.

Pepê olhava para ela sem entender muito bem. Aprendera que rir era a melhor coisa a fazer. Toda vez que ria a mãe ficava alegre e o beijava. Aquilo era bom; ele gostava.

Aos oito meses ganhou uma espécie de barraquinha sem toldo; possuía somente uma armação e lá ficavam pendurados diversos brinquedos.

- É para estimular os sentidos do bebê - disse a vendedora da loja.

De todos os brinquedos da barraquinha Pepê gostava mesmo de um pequeno espelho redondo, envolto em um Sol de pelúcia. Passava horas admirando-o.

Ao completar um ano já andava. Parecia executar uma dança do equilíbrio; a cada passo a queda era quase certa. O espelho do quarto de sua mãe não tinha mais segredos. Gostava de correr até ele e ver a imagem repetir tudo o que fazia. Ficava horas em frente ao espelho brincando de mímica e gestos mirabolantes.

Aos dois anos escolhia sua própria roupa. Esquecera-se do espelho do quarto. Subia em cima de uma cadeira e usava o espelho do banheiro. Penteava o cabelo (pelo menos pensava que estava penteando) e passava perfume. A razão?, Ritinha, seu amor da escola. Chamava-a de namorada e jurava que iriam se casar bem velhos, com uns dezoito anos.

Passou-se o tempo e o bebê virou uma criança. O espelho já não o fascinava. Gostava mesmo de brincar na rua. O pobre companheiro quase não o via. No máximo uma olhada rápida, quando Pedrinho molhava as mãos, baixando os cabelos espetados.

Aos dez começou a ir às festinhas do bairro. O espelho achou que a sua amizade havia voltado. Novamente ele demorava-se a contemplá-lo. Secava-o cuidadosamente depois do banho e arrumava-se todo. As festinhas começavam às duas da tarde e acabavam no máximo as seis. Ao chegar em casa Pedrinho corria para o banheiro. Às vezes para ver a leve marca de um beijo que havia ficado na sua face, outras para admirar sua própria beleza.

E foi aos quatorze que o espelho teve a sua primeira experiência sensual. Assustou-se ao ver a porta bater com força. Era o meio da tarde e ninguém estava em casa. Na verdade ninguém deveria estar em casa, mas Pedrinho entrou com uma menina no quarto. Os dois estavam fazendo cócegas um no outro. Cócegas estranhas; riam e se abraçavam ao mesmo tempo. Pedrinho ficava mais perto da menina mas ela o empurrava sem fazer muita força. Um beijo longo e estalado deixou seu reflexo no espelho. Pedro virou adolescente.

Aos dezoito ganhou um carro. O espelho o acompanhou nesta aventura. Não estava mais restrito ao quarto ou ao banheiro da casa; conheceria o mundo, viajando no carro novo. Via o sorriso de felicidade de Pedro em vários ângulos diferentes, seja pelos retrovisores externos, internos ou até mesmo pelo espelho do passageiro.

Gostava de ver Pedro quando saía da faculdade, perto dos finais de semana. A cada dia ele namorava uma moça diferente. Parava o carro em um destes drive-ins deixando todos os vidros embaçados.

Aos vinte e dois aconteceu o primeiro susto. Voltando de madrugada de uma festa, um pouco alcoolizado, Pedroca bateu o carro em um poste. A frente ficou toda amassada e o motor avariado. O retrovisor lateral sofreu um tremendo trauma, quebrando-se em dezenas de pedaços.

Aos vinte e nove outro acidente, este bem mais feio. Pedroca capotou o carro diversas vezes. Desolados, seus pais convenceram-no a freqüentar os alcoólicos anônimos.

Pedroca olhou-se no espelho do banheiro. Olheiras fundas, curativo na testa e hematomas pelo corpo.

- Você está um lixo. Vê se toma jeito na vida!

Nos meses subseqüentes repetia o ritual, dia após dia.

- Você está um lixo. Vê se toma jeito na vida!

A partir do quarto mês estava mais confiante e começou a olhar-se de maneira diferente. Estava dominando o vício e pensava nos planos para o futuro.

Aos trinta e três Pedro se casou. A escolhida não fora Ritinha, paixão de infância, mas sim Vânia, morena bonita e charmosa, que estudara Arquitetura na mesma época da faculdade. Ela era velha conhecida nos reflexos dos motéis; agora mostrava-se no pequeno espelho do quarto, no apartamento alugado com o dinheiro que Pedroca ganhava na construtora.

Renatinho nasceu com 49cm e 3.425g. Menino saudável e forte. Pedro chorou de alegria, com as lágrimas refletindo nos óculos de grau que usava há poucos anos. Aos trinta e oito havia aproveitado ao máximo os anos sem filhos; já era hora de criar uma família. Crescera como profissional, sendo responsável pela construção de pequenos edifícios.

Teve o seu auge na construtora com quarenta e dois anos. Era o engenheiro responsável pelo mais audacioso empreendimento da cidade. Um prédio comercial de sete andares, inteiramente revestido de vidro temperado reflexivo. No dia da inauguração o prédio olhava-o, refletindo o terno e gravata do Sr. Pedro em todas as suas placas de vidro. Sentia-se orgulhoso de fazer parte daquela vida.

Aos cinqüenta e três teve uma recaída. Seu filho Renato estava cursando a faculdade em outra cidade; sua mulher engordara e os negócios, não andavam bem. Voltou a beber, coisa que não fazia desde os tempos da faculdade.

Com o copo na mão bebeu o whisky de um só gole. Olhou-se no espelho e não encontrou o menino de outrora. Bolsas escuras abaixo dos olhos, entradas profundas nos cabelos e rugas nos cantos da boca. Sentia-se cansado e com raiva de sua dependência. O espelho nada fazia, somente lembrava-se daquele bebê pequenino que um dia conhecera e que ria quando ele copiava os movimentos de seus braços, balançando freneticamente na frente do reflexo.

O espelho estava perdido em pensamentos quando o copo foi lançado ao seu encontro. Não teve tempo de reagir.

O objeto bateu em cheio, bem no meio. Três trincas profundas deixavam a imagem de Pedro distorcida. Mesmo assim o reflexo notou que ele chorava, debruçado na pia.

Ironicamente o espelho acabou salvando-o do vício. Pedro deixara-o quebrado para relembrar do triste dia em que havia se descontrolado. Após algumas semanas vendo seu rosto distorcido, conseguiu se recompor e parou novamente de beber.

O espelho foi trocado e agora notava Seu Pedro retomar a vida. Aposentou-se da construtora aos sessenta anos e até recebeu uma homenagem especial pelos serviços prestados. A medalha que recebera, de tão brilhante, refletia a festa e alegrava-se com o sorriso dos presentes.

Vânia fazia ginástica todos os dias e Renato, agora pai, trazia o pequeno Felipe para passar as tardes de domingo brincando com o avô. O espelho não sabia se por destino ou força de vontade Seu Pedro dera de presente ao bebê de Renato uma barraquinha como a que tivera quando criança. Um pequeno espelhinho digital fazia parte do brinquedo.

Naquela noite Seu Pedro olhava fixamente o espelho de cristal. Lembrava-se dos pensamentos a respeito dos anos que se passaram tão rapidamente e das várias órbitas ao redor do Sol. Sorriu. Piscando um olho para o espelho, disse:

- Pois é, velho amigo, obrigado pelos ensinamentos que me deu durante a vida.

O espelho nada respondeu. Verdadeiros amigos se entendiam somente pelo olhar.

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