A DESPEDIDA
DA BORBOLETA

Carlos de Paula

“Era uma natureza alada, voltejante, que a sombra de um
laço espantava e que borboleteava acima da realidade num
raio de sol ou de luar, sem pousar em lugar nenhum... Seu 
espírito, cada vez mais desprendido da vida prática e perdido 
no infinito sonho, já não podia adstringir-se a relações humanas.

(Théophile Gautier, sobre Gerard de Nerval.
Souvenirs Romantique, Paris, Garnier, 1929, pg. 351)

Saiu do cinema ainda pensando em Virgínia Woolf na pele de Nicole Kidman, em “As Horas”, o único que deveria ser chamado de “O FILME”, maravilha elaborada em dueto por Stephen Daldry e pelo dramaturgo David Hare, respectivamente diretor e roteirista da obra. Sabia que iria carregar aquele rosto em sua mente pelo resto de sua vida. A belíssima australiana jamais precisaria, se bem que já não precisava desde Moulin Rouge, provar seu talento. Tanto conflito, tanta genialidade contidos na mente de um ser humano e tão bem encarnados em sua atuação. Tanta angústia, tanta melancolia, tanta coisa impedindo a gente de voar.

Como a crítica da Folha de São Paulo, por exemplo, inaceitavelmente aviltante: “O trio principal de atrizes é marcado por um desnível profundo, que prejudica o filme: Nicole Kidman não convence como Virginia Woolf, com a contribuição inestimável do já famoso nariz protético. A interpretação da atriz, que dá excessiva importância a cada frase, fica ainda mais fraca perto da excelência de Stephen Dillane e Miranda Richardson. Um trabalho que contrasta com a economia de Julianne Moore e mesmo com o desempenho de Meryl Streep, intenso na dose certa.” Afinal, para que ler a crítica, não é mesmo? A vida do crítico, sua formação, seus hábitos, suas leituras e seus filmes vistos e admirados jamais coincidem com os nossos. Mas insistimos em lê-los e nos aborrecer, na maioria das vezes. Melhor voar, borboletear, do jeito que pedem nossos corpos, como podem nossas asas. Voar e afirmar, voando, que Nicole convence, sim, e que só quem tem medo de Virgínia Woolf pode afirmar o contrário.

Sabia que a realidade não concordaria com isso. O vôo, se houvesse, seria sempre interrompido por fatores externos ou mesmo internos, mas independentes de sua vontade, de seu controle. E as paisagens desenhadas em sua alma, incrustadas em sua imaginação, elas não poderiam ser vistas de cima, jamais.

Alguém sempre se sacrifica para que os outros possam seguir vivendo. Deitou-se na cama pensando que seria mais uma noite de agonia, desejando não acordar, acordando sem querer se levantar, levantando-se sem poder voar. Foi-se, com o som do revólver se confundindo com o de mudança de ciclo da máquina de lavar roupa.

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