MIL
BORBOLETAS

Iosif Landau

Tarde, mais de meia noite, decidi tomar uma última, a rua mal iluminada, folhas das amendoeiras amontoadas debaixo das árvores despidas, o vento a espalhar algumas, tentava chutá-las sem sucesso pra frente, pro lado, cansado, nostálgico, imagens surgiram, aquele pedaço de Ipanema me lembrou Paris, exagero? com certeza... luzes acesas em poucos edifícios incomodavam, bafo de vento quente levantou folhas, poeira, entrei no bar da esquina, silêncio, apenas um freguês, um velho com olhar perdido num copo vazio, sentei numa mesa na pequena varanda, garçom sonolento aproximou-se , ficou parado sem dizer palavra, meia-idade, olhos empapuçados, paletó sujo, suado nas axilas, curto, apertado, fedia a suor, numa das mãos segurava um pano usado. 

- uísque, cowboy qualquer um, nacional - falei sem entusiasmo, olhei o velho, bem vestido, terno bem talhado, camisa branca, nó de gravata triangular, simétrico, sapatos engraxados. 

- é infeliz - falou o garçom. 

- sirva ele - falei ao garçom. 

Com uma garrafa de conhaque na mão ele serviu o velho, reaproximou-se de mim: 

- vai ficar até o sol... 

- é solidão. 

- outra! - gritou o velho. 

O garçom encostou-se nele: 

- não tem mais, chega! - falou pronunciando cada sílaba, como se falasse para um imbecil - nada mais essa noite, vá pra casa! 

O velho resmungou algo ininteligível, levantei-me e sentei-me à mesa dele, a rua como se recebesse um sinal invisível, inaudível, ressuscitou, batidas de portas de carro, ronco de motores, vozeio indistinto... 

- acabou a putaria - falou o velho - as borboletas noturnas vão aparecer. 

Elas entraram, se sentaram. 

- veja aquela! - falei - é com certeza a puta mais gorda que já vi, nunca... 

- também a mulher mais gorda vista por mim... filme de Fellini, Armarcord - resmungou o velho - mulher gorda é amante ideal, no verão dão sombra, no inverno calor...

As outras duas, uma morena bonitinha, uma loura cansada, usavam vestido do mesmo tecido, mudava de cor a cada movimento. 

- ei, fofa! - falou o velho - teu vestido é lindo, lembra um campo florido com mil borboletas. 

- ei... vocês... pagam uma bebida? - voz agradável - meu senhor, obrigado, a gente vê logo que é um homem de gosto apurado. 

- garçom, as sirva o que quiserem - falei - nada de treco importado... quanto será que pesa? 

- uns cento e cinqüenta... tem cara bonita, dureza montar nela - balbuciou o velho. 

- paga que te ensino! - respondeu ela rindo, as banhas sacudindo. 

- dá no couro ainda? - perguntou a loura - quantos anos tem? 

- mais de oitenta - resmungou 

- safadinho! - falou a morena 

A gorda continuava sacudindo as banhas, riso silencioso. 

- quanto quer pro velho te dar prazer, gorda? - perguntou o garçom. 

- me chamo Silvia - falou a gorda - o nome de guerra é Baby. 

As banhas sacudiam, o vestido mudava de cor a cada movimento, o rosto lindo, a pele também. 

- e você morena? - perguntei. 

- Regina! 

- bonito, parece com você. 

- quer comer ela de graça? - gritou a loura. 

- e tu, como se chama? 

- Nilza... pra que quer saber? 

- não fique nervosa - falou o garçom ao encher os copos na mesa - o moço quer ser apenas gentil.

- de conversa já tô cheia, não fiz outra coisa a noite inteira... e você seu mulambento, não se mete, e vê se traz mais uma rodada. 

- pode? - perguntou o garçom. 

- tudo bem, mas só pago até quatro. 

- droga de pão duro - falou a loura. 

- se o velho levantar o dele será no amor - riu Baby. 

O velho levantou a cabeça, olhou para ela, lágrimas escorreram pelo rosto vincado, a gorda levantou-se, aproximou-se, segurou a cabeça dele junto aos seus seios imensos: 

- paizinho, não chora... 

- das janelas abertas pelo vento, multicoloridas borboletas voam na noite chuvosa, colidem no arco íris numa explosão de rosados suspiros... - a voz do velho vindo como um eco de uma profunda caverna. 

Paramos de beber, a gorda beijou o rosto cansado, juntou-se às amigas: 

- nunca me disseram palavras tão lindas! 

Silêncio nos envolveu, continuamos a beber, nenhuma dor, tudo sereno, nenhum desconforto, as sombras se desvaneciam, senti ternura, desejo de amor, redenção das safadezas do passado, a gorda, linda mulher, imensa borboleta gigante, lembrei-me de minha mortalidade, do meu passado, campos floridos, centenas de borboletas resplandecendo ao sol, fazia tempo que não via, medo me invadiu, sopro do nordeste passou por mim, deixou-me vazio, oco, podridão no ar... o velho levantou-se, cambaleando pegou a mão da gorda e a beijou, ela sorriu, ele desceu com cuidado os três degraus até a rua, ela o seguiu com o olhar. 

- me casaria com ele - falou. 

Regina e Nilza riram:

- ia ser enfermeira, isso sim.

Surto de melancolia, o mal da raça, diziam, dos fugidos do lá de lá... bombas caindo, Deus me tire daqui, não me deixe morrer, acredito em você, direi a todos que és o único...

- que foi, moço bonito, parece que...? 

- nada, nada meu bem, estou meio triste.

- se quer transa - falou a morena - é cinqüenta por uma bimbada, pra dormir cenzinho, serviço completo duzentinho. 

- pra ti, moço bonito, preço especial - respondeu a gorda - gosto de careca bigodudo, tipo bandido mexicano, me procura na Prado Junior, todos me conhecem por lá. 

- decidem logo - falou o garçom - tá na hora de fechar. 

- deixa de sacanagem, nem são três de la matina - falou Regina - só fecha quando sai o último freguês. 

- tô moído, minha patroa me espera - bocejou o garçom. 

A figura de desespero do garçom me enterneceu, tentei imaginar a mulher dele, minha imaginação fértil quando se tratava de miséria humana, lembrei-me de outra mulher... que bom que deixamos as brigas do lado... nunca brigara em demasia com ela como fizera com todas que amara, elas acabavam cansando, desistiam, o amor corroído pelas escaramuças... amei tanto, amei demais, mas céus, por que exijo tanto, tanto desgaste... Baby sorriu, pareceu-me o rosto mais lindo que já vira em toda a minha vida, a pele, a voz... me deu vontade de abraçá-la, mas era grande demais, o garçom baixara quase todas as portas, apenas uma meio levantada, pedi a conta, paguei, saí sem me despedir, sopro do nordeste me acariciou... vou procurar ela na Prado Junior amanhã... olhei para trás, o vestido mudava de tonalidade a cada movimento, campo florido com mil borboletas.

fale com o autor