BORBOLETA
CUBANA

Luís Valise

 
 

Ele se aproximou num intervalo entre as aulas. Era alto, magro e tinha aquela barba de tuberculoso, que depois ficaria na moda. Pouco aparecia na escola. Parou ao lado dela e falou baixinho, sem olhá-la diretamente:

- Precisamos de ajuda.

A princípio Mariana não entendeu. Olhou para o rapaz que balançou a cabeça negativamente, fazendo-a olhar para a frente. E emendou:

- Amanhã, neste mesmo lugar, mesma hora. Esteja sozinha.

Mariana percebeu que ele se afastava, e resistiu à vontade de olhar para trás. Os tempos eram duros. Perigosos. Ela fazia parte do Grêmio, pertencia à Comissão de Formatura, ouvira falar daqueles que se envolveram com política, mas nunca teve participação nos movimentos que envolviam passeatas, pichações, distribuição de manifestos mimeografados, nada dessas coisas. Seus pais não se cansavam de alertá-la para o perigo que isso representava. Corriam murmúrios sobre prisões, torturas, desaparecimentos, e Mariana fazia questão de não opinar, não ouvir. Por isso ela se espantou com aquela aproximação. “Precisamos de ajuda.” Aquela frase teve um efeito inesperado em Mariana, que resolveu não contar a ninguém sobre aquilo.

O resto do dia passou voando. Arranjou um pretexto para não encontrar o namorado. Noite mal-dormida, a ansiedade fazendo-a acordar a todo instante, a imagem do rapaz de barba rala surgindo em sua mente: “Precisamos de ajuda”. Tão moço, quase um menino... Estaria correndo perigo? Teria sido torturado? As idéias rondavam a cabeça de Mariana, que se sentia assustada com a possibilidade de envolvimento, mas também sentia vontade de ajudar, gente da sua idade, “sua” gente... Resolveu. Ela estaria lá, àquela hora, sozinha.

Tomou um banho demorado. Examinou o corpo no espelho. Não sabia bem por que, mas sentiu que algo mudava dentro de si. Achou-se mais bonita. Tomou o café em silêncio, mal ouvia o que a mãe dizia. Excitada, vestiu-se “para a guerra”, camisa de mangas compridas, calças jeans, tênis, e uma jaqueta de nylon, embora estivesse sol e calor. A mãe brincou:

- Não está esquecendo a barraca?

Mariana deu-lhe um beijo no rosto e saiu para a escola. Mal ouvia o que o professor dizia. Consultava o relógio, impaciente. Terminada a aula, foi para o pátio, para o lugar marcado. Acendia um cigarro quando sentiu alguém ao seu lado. Com o canto do olho viu a barba rala. Ele pediu um cigarro. Acendeu, tragou, sorriu e entregou-lhe um envelope com naturalidade, e junto um pedaço de papel com um endereço:

- Decore o endereço e destrua o papel. Leve o envelope às três da tarde. Diga que é a Borboleta. Aguarde pela resposta.

Desta vez foi ela quem se afastou sem olhar para trás. No banheiro, leu o endereço, acendeu o isqueiro e queimou o papelzinho. Voltou para a classe com o coração disparado.

Mal tocou a comida do almoço. A mãe, curiosa:

- O que foi, agora? Mariana nem pestanejou:

- Meu namoro com o Rogério. Não sei se quero continuar.

À tarde, saiu com a mesma roupa. Chegou no endereço indicado, um prédio de três andares. A porta estava trancada. Tocou o interfone. Um estalido, e uma voz perguntou quem era:

- A Borboleta. Sentiu-se meio ridícula. A porta foi destravada.

Subiu as escadas até o terceiro andar. Não precisou tocar a campainha. A porta foi aberta, um rosto espiou pelo vão, e deu passagem para que ela entrasse. Dentro tinha cheiro de mofo. Janelas fechadas. Outro rapaz, também magro, cabelos compridos. Mariana estendeu o envelope, e percebeu que o rapaz a examinava. Antes de abrir a mensagem, ele perguntou:

- Você sempre faz isso?

- Primeira vez.

- Com medo?

- Médio.

- Sente-se no sofá. Não tenho nada para oferecer. Tudo bem?

Mariana sentou-se, enquanto ele entrava num quarto. Ela ouviu o ruído do envelope sendo aberto. Levantou-se, andou até a cozinha. A luz do dia entrava pelos vidros do vitrô, também fechado. Abriu a geladeira. Não tinha muita coisa. Ovos, um queijo pela metade, garrafa de água, um prato fechado com papel alumínio. Voltou para a sala. Olhava a rua pelas frestas da veneziana. Sentiu alguém atrás de si. Virou-se, assustada. Era o jovem, e ele estava muito perto. Olhou-a nos olhos.

- Como estão as coisas lá fora?

Mariana sentiu as faces arderem, não sabia o que fazer. Olhava o rapaz de olhos subitamente tristes. Nunca estivera a sós com um estranho.

- Normal. Quer dizer... pra mim está tudo normal. Faz tempo que você está aqui?

- Dois meses. Você é a primeira pessoa que aparece, nesse tempo.

Mariana pegou a mão do rapaz num gesto de conforto, e ele levou sua mão aos lábios e deu um beijo. Em seguida puxou-a para si, num abraço. Estavam calados. Ela sentiu o coração acelerar. Esboçou um gesto para desvencilhar-se, sem convicção. Ele manteve-a firmemente abraçada. Em seguida beijou-a no rosto. Mariana olhou-o nos olhos e esperou pelo beijo na boca.

A falta de intimidade, o desconhecido, a nudez inesperada. Ela escondia os seios pequenos, o medo de se entregar por completo. Carinhos hesitantes, e beijos, muitos beijos. Amor sem penetração. Depois, abraçados, calmos, evitaram saber sobre o outro.

Lá fora já estava escuro quando Mariana saiu. Ela não sabia o nome do rapaz, nem podia perguntar. Levava outro envelope fechado, que deveria ser entregue na escola, no mesmo lugar, no dia seguinte.

Durante a janta, a mãe perguntou se Mariana já havia falado com Rogério. Mariana estava ausente:

- Com quem?

Mariana fumava no pátio da escola. Alguém se aproximou.

- Tudo bem?

Mariana não respondeu. Ofereceu um cigarro, e em seguida estendeu o envelope. O rapaz guardou o envelope dobrado no bolso. Acendeu o cigarro. Deu uma longa tragada. Agradeceu, e foi se afastando. Mariana foi imprudente:

- Espera um pouco! Quando eu volto lá? Quando haverá outra mensagem?

- Não haverá outra mensagem. Ele já não está mais lá. Você foi muito útil. Não será esquecida.

Mariana ficou parada, vendo o rapaz sumir em direção à saída. Não haveria outra mensagem! Ele já não estava mais lá! Sentiu uma ligeira tontura ao imaginar que nunca mais o veria. Tinha sido muito útil... Não seria esquecida... Deu uma última tragada, jogou fora o cigarro e voltou para a classe.

Almoçava sem vontade, evitando o olhar da mãe. De repente, toca a campainha. Mariana olha a mãe com olhar de espanto. A mãe se levanta para abrir a porta. Mariana corre para o banheiro. Sente o suor se formando na testa. A voz da mãe, do lado de fora:

- É pra você, Mariana. Ele está na sala, não demore.

Sem ter por onde escapar, Mariana dá um suspiro de derrota. Abre a porta pensando no rapaz: - Quem sabe se encontrem na prisão? – Caminha lentamente para a sala. Entra de cabeça baixa, olha temerosa para o homem sentado numa poltrona. É Rogério, sorrido com ternura:

- Vamos pegar um cineminha hoje?

Mariana espera o coração voltar ao normal. A decisão tem que ser rápida. Caminha na direção da poltrona. Pede que ele se levante. Pede que ele a abrace. Dentro do abraço de Rogério ela se acalma. E decide:

- Vamos, meu carcereiro.

Isso já foi há algum tempo. Mariana é casada, feliz, e tem um cachorrinho chamado “Che”.

 
 

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