ANGÉLICA
E A BORBOLETA

Rodrigo Stulzer Lopes

Angélica sempre teve um enorme fascínio por tatuagens. Desde a adolescência pensava em fazer um desenho no corpo, mas nunca chegara a uma conclusão. Não gostava de dragões, tribais, centauros, unicórnios, sóis e luas; ela queria algo diferente.

A idéia nunca lhe saiu da cabeça. Era uma espécie de briga consigo mesma; não sabia se iria se arrepender depois. Sempre que passava por um estúdio de tatuagens entrava e pesquisava as milhares de fotos tentando escolher um desenho que lhe fizesse sentido.

Era julho e nesta época passava as férias no sítio do seu tio Gabriel. Gostava muito daquele lugar. Era aconchegante e sentia-se como se fosse sua verdadeira casa.

Falavam pela região que uma nova estrada iria desapropriar diversos sítios. Os proprietários estavam se organizando para fazer um protesto, pois o estado não estava dando nenhuma alternativa para eles. Além do mais, aquela era uma região de cultivo e a natureza era exuberante. Angélica, ativista ferrenha, já havia se organizado com os moradores da região para estar presente no protesto.

Numa manhã fria e ensolarada saiu para caminhar. Descalça, andava por sobre o orvalho que sumia nos primeiros raios de sol. Ao passar por uma figueira viu um casulo, suspenso em um galho. Aproximou-se e notou que o sol começava a esquentar a frágil estrutura feita de minúsculos fios, agora enrijecidos. O invólucro era quase transparente e podia notar um pequeno corpo no seu interior que começou a se mexer.

Angélica ficou fascinada e chegou bem perto do casulo. Notou que aquele frágil corpo fazia diversos movimentos para se libertar daquele lar que agora havia virado uma prisão. Conteve um impulso de ajudar o pequeno ser; sabia que as conseqüências poderiam ser desastrosas. "A natureza tem o seu próprio tempo", pensou, vendo um lado do casulo começando a ceder.

Ela perdera a noção do tempo olhando para aquela batalha. O sol estava a pino quando uma linda asa púrpura rompeu o casulo e brilhou com a luz da manhã. Exuberante e de forma maravilhosa uma borboleta surgiu. Começou a bater suavemente suas asas e alçou vôo, deixando uma casca sem vida para trás. A emoção tomou conta de Angélica e uma lágrima escorreu pela sua face.

Na volta das férias retomou suas atividades na universidade envolvendo-se na rotina da cidade grande.

Ao voltar para casa, após um dia cheio de atividades, pegou um atalho para fugir do trânsito. Passou por um bairro vizinho ao seu e caiu em um reduto hippie, com uma rua sem saída, cheia de lojas dos mais diversos tipos. Gostou das fachadas e resolveu parar para dar uma olhada.

Caminhou pela calçada olhando as vitrines. Tinha de tudo, desde batas, incensos, bandanas e até flores e comidas naturais. No final da rua havia uma casa de dois andares, com uma pequena porta na frente e um letreiro escrito em caracteres rebuscados. "Tatuagens", era a única coisa que dizia a placa. Não resistiu e entrou no local.

A loja era limpa e bem iluminada. O interior, pintado de um azul celeste, claro e límpido. A sala em que estava possuía uma pequena mesa com cadeira e um sofá ao lado. "Deve ser a recepção", pensou.

O ambiente dava-lhe uma sensação de calma e paz. Como ninguém apareceu acabou pegando uma pasta de fotografias ao lado do sofá e sentou-se. Ficou absorta com a quantidade de tatuagens fotografadas na pasta e na riqueza de detalhes de cada desenho. Seja quem for que tenha feito aqueles desenhos era um verdadeiro mestre. Após alguns minutos foi surpreendida por uma voz à sua frente.

- Boa noite, em que posso lhe ajudar? - dizia um rapaz magro e alto, de cabelos compridos e em torno de seus trinta anos.

Já se recompondo do susto Angélica olha o moço dos pés à cabeça, respondendo.

- Desculpe por ir entrando assim. Vi a placa na entrada e resolvi dar uma olhada.

- É como a maioria das pessoas acaba nos conhecendo. Meu nome é Jonnie e sou o tatuador.

- Interessante. Eu não conhecia esta rua. E olha que eu gosto de lugares alternativos.

- Estamos aqui a pouco tempo. Em que posso lhe ser útil? Gostaria de fazer alguma tatuagem?

- Já faz bastante tempo que quero ter uma, mas ainda não escolhi o desenho.

- Só faça a tatuagem quando decidir o que quer. Quando fazemos uma tatuagem, ela se integra ao nosso corpo. Para alguns ela até muda a vida das pessoas.

O telefone de Angélica toca e quebra o diálogo entre os dois.

- Alô?.. Oi Cláudia!, já estou indo para casa. Eu estava em um engarrafamento e acabei parando para comprar umas coisinhas... Ok, nos vemos mais tarde. Tchau...

- Desculpe, era uma amiga.

- Pelo jeito você tem que ir embora.

- Tenho sim. Qualquer dia eu volto com um desenho para você fazer. Tchau!

O rapaz ficou observando-a entrar no carro e saindo da rua. Voltou para dentro do seu estúdio com uma sensação de que aquela garota seria um dos seus trabalhos mais desafiadores.

Naquela noite seus sonhos foram agitados. Muitos fatos misturavam-se na sua cabeça. O sítio de seu tio; o tatuador e seu rosto que lhe lembrava alguma pessoa; a borboleta saindo da casca e as provas da universidade, que estavam para chegar.

Acordou de um sobressalto. "A borboleta!". A imagem da borboleta saindo do casulo formou-se na sua cabeça. Este era o desenho que procurara tanto tempo.

Na manhã seguinte, antes de ir ao trabalho, passou na rua dos hippies. O estúdio de tatuagens ainda estava fechado. Tentou a maçaneta mas a porta estava trancada. Bateu algumas vezes e não ouviu nenhum ruído.

Já estava saindo quando a porta se abriu e o sorriso largo de Jonnie, ainda com cara de sono, apareceu.

- O que aconteceu com você, caiu da cama? - disse Jonnie esfregando os olhos.

- Desculpe, mas eu descobri o desenho que quero tatuar - falou, ainda excitada.

- Ok, entre, por favor. Vamos ver qual será o seu destino.

Sentaram-se no sofá, na sala de recepção do estúdio e Angélica contou a história da borboleta e do casulo. Jonnie ouviu atentamente e pegou um lápis e algumas folhas de papel em branco.

Enquanto Angélica falava Jonnie rabiscava nas folhas. Ao terminar o relato ele ainda estava desenhando. Fazia alguns traços, olhava para Angélica e voltava a desenhar. Parecia tentar ver dentro da sua alma o que deveria incluir no desenho. Finalmente acabou o rascunho e exibiu-o.

- Ainda faltam alguns detalhes, mas acho que dá para você ter uma idéia de como poderá ficar.

O papel mostrava uma pequena borboleta saindo de dentro de um casulo no seu primeiro bater de asas.

Ela olhou o desenho. Era exatamente isso que ela procurara durante anos.

- Jonnie, vamos fazer esta tatuagem já. Se eu resolver esperar vou acabar pensando demais e deixar para depois.

- Ok, é você que manda. Onde deseja fazer o desenho?

- Aqui atrás, um pouco acima do bumbum. Assim ela vai aparecer só quando eu usar uma calça de cintura baixa.

Jonnie indicou a porta da sala de procedimentos e Angélica entrou. Com um pouco de medo deitou-se de costas na mesa. Enquanto ela relaxava, o desenho foi passado para um papel vegetal e coberto com nanquim. Agora os detalhes apareciam mais ainda.

Como o desenho seria pequeno Jonnie calculava que não demoraria mais que meia hora para fazê-lo. Ela teria que voltar outro dia para preencher as cores e retocá-lo.

Há dois meses fizera a tatuagem e gostava mais ainda do desenho. Sentia-se diferente. A borboleta fazia parte do seu corpo, quase que tendo vida própria. Por vezes achava que as asas se moviam.

Tomava o café quando o telefone tocou. Era o tio Gabriel.

- Olá minha querida sobrinha, como estão as coisas por aí?

- Aqui tudo bem tio, estou com saudades deste sítio maravilhoso!

- Foi por isso mesmo que lhe telefonei. Lembra do protesto contra a construção da estrada? Pois é, estamos marcando-o para este sábado. Os engenheiros vão começar a colocar as máquinas na primeira fazenda e todo mundo vai lá para não deixar eles começarem o trabalho.

- É isso aí tio, temos que defender este pequeno pedaço de paraíso. Pode contar comigo, estarei aí na sexta à noite.

Angélica iria brigar para valer. Este pessoal do governo não entendia. Só mesmo usando a força da população para modificar alguma coisa. Já participara de diversos protestos junto a organismos do meio-ambiente e sabia o que deveria fazer. "Não podemos mostrar fraqueza", pensou. "Somente através do confronto direto é que podemos fazer as coisas se reverterem."

Na quinta à noite resolveu convidar Jonnie para ir junto. Ele aceitou na
hora. Não tinha nada o que fazer naquele final de semana e além do mais
gostara muito de Angélica. Quem sabe poderiam ter algum tipo de
relacionamento mais para a frente.

Na sexta, depois do expediente, ela passou no estúdio. Jonnie estava com a mochila pronta e saíram em direção ao interior. A viagem não era longa, o sítio estava a cerca de duas horas de distância. Conversaram muito e ficaram se conhecendo melhor. Angélica gostava daquele rapaz. Era um moço direito e batalhador. Ele contou que havia montado o seu estúdio com dinheiro próprio que conseguira tatuando em feiras e eventos por todo o país.

Chegaram no sítio as nove da noite. Seu tio os esperava com um bom café e pão caseiro.

- Sejam bem-vindos, jovens!

- Olá tio, este aqui é Jonnie, um amigo.

- Belo sítio que o Senhor tem por aqui. - falou o rapaz cumprimentando Gabriel.

- Bonito mesmo você vai ver amanhã cedo - disse Seu Gabriel com um sorriso.

Ficaram conversando até tarde sobre os preparativos para o protesto do dia seguinte. Gabriel estava preocupado pois ouvira falar que iriam trazer seguranças armados para garantir que as obras fossem iniciadas.

- Não se preocupe com isso tio - disse Angélica -, já estou acostumada com este tipo de gente. O pessoal só tem pose. Mostram as armas para deixar as pessoas com medo. No fundo gostariam de estar em casa com suas famílias. O que temos que mostrar é que não estamos para brincadeira. Vamos fazer um grande protesto, para eles verem que não estamos brincando.

- Tudo bem minha querida, mas tomemos cuidado. Não quero briga por aqui. Além do mais temos uns vizinhos, os filhos do Seu Sérgio, que adoram uma confusão. Eles também vão estar por lá e isso me preocupa um pouco. Mas mudemos de assunto que este já encheu. E você, rapaz, o que faz da vida?

- Eu sou tatuador. Tenho um estúdio na cidade.

- E ele é muito bom - disse ela, já virando de costas - Olha só que desenho lindo ele fez.

Angélica puxou a blusa para cima e mostrou a borboleta para seu tio. Ela estava com um brilho diferente e parecia maior do que quando fora tatuada. Até Jonnie se surpreendeu com o tamanho e brilho.

- Nossa, meu rapaz - falou Seu Gabriel -, você é realmente um artista. Parece que a borboleta está viva!

- Obrigado Seu Gabriel, mas é que a modelo ajuda bastante - disse, olhando para Angélica e dirigindo-lhe um sorriso.

Dormiram muito bem. Nada de carros ou sirenes; somente o vento, os pássaros e os ruídos da natureza. Na manhã seguinte o sol apareceu forte e o céu estava sem nuvens.

A mesa estava posta e Seu Gabriel conversava com dois vizinhos. Tomaram o café decidindo como iriam se posicionar na estrada. Queriam impedir o avanço dos tratores da construtora encarregada da obra.

Angélica sentia-se diferente. Sabia que aquele não seria um dia normal. Sentia um calor na base da coluna e a sua tatuagem pulsava, como que querendo se desgrudar de seu corpo. "Calma aí minha coleguinha, você não vai se separar de mim, nem que eu tenha que sair voando junto com você."

Na hora marcada dezenas de pessoas se organizaram na estrada principal. Deixaram uma barricada de tratores menores no meio da rua e se posicionaram em frente, com enxadas e ancinhos na mão. As ferramentas tinham sido idéia de Angélica. Segundo ela era para "dar mais impacto" no protesto.

Estavam conversando quando escutaram ao fundo um barulho de motores. Na estrada de chão batido avistaram seis tratores de grande porte seguidos por duas retro-escavadeiras que espalhavam poeira, deixando uma nuvem marrom por onde passavam. Atrás deles seguiam dois carros. Aguardaram de enxadas e ancinhos em punho, sem dizer uma palavra sequer.

Os tratores pararam a cerca de vinte metros da barricada. Os dois carros passaram pelo comboio e pararam ao lado da estrada. Os carros foram os únicos que desligaram os motores pois os tratores, retro-escavadeiras e caminhões permaneceram funcionando.

Dos carros saíram oito homens que deveriam estar fazendo a segurança do chefe da empreiteira. Este, um homem barbudo e com cara de poucos amigos. Pelo jeito estava ali para fazer o comboio passar, de um jeito ou de outro. Andando para a frente da barricada, com alguns capangas às suas costas, falou, olhando por cima de todos.

- É bom vocês saírem daí. O meu patrão quer logo começar esta obra e não é por causa de um bando de gente que não têm o que fazer, que vamos deixar de ganhar o dia de trabalho.

- Vocês não podem passar por aqui - falou Angélica - nem existe ainda um mandado judicial para desapropriação.

- Olha aqui mocinha, o contrato já foi assinado. O resto são detalhes. Queremos trabalhar e é isso que vamos fazer.

- Vão fazer nada - disse um dos filhos do Seu Sérgio, batendo com a mão no facão preso à cintura - Aqui não vai passar ninguém.

- Estamos aqui para defender nossas terras - falou Gabriel, segurando o braço de Angélica.

- Saiam todos da frente, vamos trabalhar - disse o capataz, dando uma ordem de avanço para o maquinário.

Os tratores começaram a avançar lentamente. Ninguém se mexeu. Os ânimos se esquentavam cada vez mais, tanto do lado da empreiteira quando do lado do protesto.

- Ninguém passa! Ninguém passa! - gritavam todos, de mãos dadas e encarando o capataz da empreiteira.

- Podem tocar estes tratores - falou o capataz com o punho cerrado. Parecia não se importar com o que pudesse vir a acontecer.

Paulo, o filho mais velho de Seu Sérgio, valente e bom de briga sai correndo do meio da multidão e joga uma pedra, atingindo o peito do capataz. Ele cai no chão e enfurecido retira um revólver da cintura.

- Agora chega de brincadeira, podem derrubar tudo. Não quero ver nada sobrando destes tratores de brinquedo. - disse o capataz enfurecido, apontando a arma para a multidão.

Angélica notou que alguns fazendeiros também retiraram facões da cintura. Percebendo o perigo iminente ela correu até o meio do confronto e levantou as mãos pedindo calma. Ninguém a escutou e os dois lados avançaram para o meio entre gritos de protesto e de raiva. Ela tentou conter os primeiros que começaram a brigar mas já é tarde demais. Um estampido seco interrompeu os gritos. Alguém atirara na multidão. Angélica sentiu um impacto no peito e logo em seguida um frio percorrer-lhe a espinha. Olhou para sua barriga e uma mancha vermelha começou a se espalhar pela sua blusa.

Caiu no chão antes que Jonnie e seu tio pudessem lhe socorrer. Um silêncio sepulcral tomou conta da estrada. Alguns olhos se encheram de lágrimas enquanto outros fugiram dos olhares acusadores.

O capataz entrou no carro rapidamente e mandou as máquinas darem meia volta. A multidão perdeu a sua força. Alguns tentavam ajudar enquanto que outros ficaram em estado de choque. Nunca pensavam que algo deste tipo pudesse acontecer.

Angélica estava caída no meio da rua com Jonnie e Gabriel ao seu lado. Sabia que não tinha muito tempo de vida. Começava a ficar tonta e sem fôlego. Sentia somente uma forte coceira na tatuagem que fizera há alguns meses atrás.

- Tio, jure que nunca vai desistir de seu sítio. Ele é a sua vida.

- Não se preocupe minha menina, - disse Seu Gabriel, entre lágrimas - Você vai ficar boa. O pessoal do hospital vai lhe ajudar.

- Angélica, fique firme, você vai conseguir - falava Jonnie.

- Não se preocupem comigo, eu já fiz o que tinha que fazer. Agora quero me libertar. Tio por favor me coloque de bruços, meu peito dói muito.

Seu Gabriel tirou o casaco e colocou-o no chão. Jonnie virou Angélica e deitou-a gentilmente de costas, sentando ao lado dela.

- Jonnie, deixe a minha borboleta respirar. Ela não pode morrer junto comigo. Ela pertence a este lugar.

- Calma Angélica, você vai ficar bem.

Jonnie puxou a blusa, deixando à mostra a borboleta tatuada.

O desenho começava a tomar vida. Uma luz branca irradiava da borboleta enquanto ela se mexia. Angélica estava calma e respirava com dificuldades. Jonnie segurava sua mão e parecia não entender o que estava acontecendo. Neste momento a luz diminuiu e a borboleta se desgrudou da pele de Angélica, ficando pousada nas costas, batendo levemente as asas.

Angélica lembrou-se do dia em que viu a borboleta sair do casulo e agora sentia a mesma coisa. Teria finalmente a liberdade que sempre desejara.

- Tio, Jonnie, não fiquem tristes. Estou bem e vou viver para sempre neste lugar lindo, que sempre esteve no meu coração.

Respirou profundamente e fechou os olhos. A borboleta começou a bater as asas e alçou vôo de forma graciosa.

Ficaram olhando para o céu até que ela desapareceu, voando para longe, na direção do sítio do Seu Gabriel.

O enterro de Angélica foi feito no sítio de Seu Gabriel. Aquele era um lugar muito especial para ela e sempre havia falado que gostaria de morar lá. Somente amigos e parentes compareceram e a cerimônia foi bem simples. Seu Gabriel falou a todos sobre aquela menina linda que vinha passar as férias no seu sítio e a alegria que trazia para todos.

Quando o caixão foi fechado e começaram a baixá-lo no local do enterro, milhares de borboletas começaram a voar acima das pessoas. Pareciam um enxame de abelhas atraídas pelo pólem de flores. Todos os presentes ficaram maravilhados com aquela visão e saíram com uma grande alegria no coração, sabendo que Angélica estava feliz.

Todos os jornais da região publicaram a tragédia como matéria de capa. O capataz havia sido preso, juntamente com um dos seguranças que diziam ter sido o autor do disparo. O sentimento de indignação foi tão grande que acabaram embargando a obra da nova estrada. Ela iria passar por outro local, desabitado e com pouquíssimo impacto ambiental.

Seu Gabriel continuou a sua vida, apesar de ter uma enorme dor no coração toda vez que lembrava da querida sobrinha. Depois daquela ocasião resolveu se dedicar à criação de borboletas. Tinha milhares de matrizes no seu sítio e revendia os casulos vazios para lojas de artesanato da capital. Sua casa estava sempre cheia de borboletas, das mais diversas cores e tamanhos. Gostava de todas, mas tinha a sua predileta. Era uma borboleta diferente, com asas grandes e de um vermelho vivo. Ela sempre chegava pela manhã e pousava suavemente no seu ombro.

Certa vez Gabriel foi para a cidade e resolveu visitar Jonnie no seu estúdio. Seguiu as indicações até chegar na rua sem saída, reduto dos hippies e lojas alternativas da região. Ao chegar na rua, local do endereço no cartão que recebera de Jonnie um dia antes da tragédia, não encontrou nada, além de um parquinho. Nada de casa vistosa ou qualquer placa de tatuagens. Entrou na loja ao lado para perguntar.

- Bom dia, estou procurando uma loja de tatuagens. O endereço que tenho era dessa rua.

- Meu senhor, - disse uma senhora - já estou aqui a mais de dez anos e nunca tivemos uma loja de tatuagem nesta rua.

- Mas isso é impossível. Eu conheci o dono da loja. Ela deveria estar aqui. Seu nome era Jonnie; era um rapaz novo, de uns trinta anos e de cabelos compridos.

- É engraçado. De tempos em tempos sempre vem alguém perguntar de um rapaz com esta mesma descrição, mas realmente não tem ninguém aqui. Eu fui uma das primeiras a construir minha loja e antes disso a única coisa que havia nesta rua era um viveiro de borboletas.

Seu Gabriel saiu da loja sem entender nada. Sentou em um banco do parque, desolado. Baixou a cabeça e começou a chorar. Ao se recompor notou que haviam pousado em seu ombro duas belas borboletas. Uma brilhante, de um vermelho vivo e outra azul celeste. Ambas estavam bem juntinhas e partiram voando graciosamente pelo céu.

Enxugou os olhos e levantou-se, caminhando de volta para o carro. Estava com saudades do seu sítio. Tinha muita coisa a fazer e milhares de borboletas para cuidar.

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