TÂNIA E AS GUERRAS ESTÉTICAS
Fábio Fujita

Num primeiro momento, pensou em ser compreensiva, dizer que tudo bem, a vida é assim mesmo, até que se lembrou que era mulher e acabou respondendo seu puto desgraçado. Afinal, só um puto desgraçado poderia ter a empáfia de anunciar daquele jeito, assim como quem compra banana, que se apaixonou por outra. No fundo, Tânia entendia, mas achava que a classificação bem cabia a Linalvo: puto desgraçado. Entendia porque a relação estava muito ruim, era fato. Aliás, nunca fora boa. Ela, aquela coisa desbocada, midiática. Perua mesmo. Ele, coitado, aquela timidez ensimesmada, humildade, lealdade, parecendo slogan de Revolução Francesa. Não tinham como dar certo. 

Acontece que, para Tânia, era um absurdo ser dispensada daquela maneira, "me apaixonei por outra", ora. E um pé na bunda vindo do Linalvo, aquele maria mole? Era um disparate. Ela era Tânia Scliar, definitiva, musa de todos as gerações, imaginava-se. No maternal, dizia, os meninos a achavam um charme, simplesmente porque ela não chorava quando a Tia Katiola a pegava no colo. Pouco depois, já no apogeu do Jardim I, descobriu que empinar o nariz podia fazer inveja nas outras sirigaitas, e lá estava ela, achando-se uma verdadeira Maria Joaquina dos trópicos (embora tudo tenha começado com uma gripe de longo prazo. Sim, este cronista tem a convicção de que mulher metida é fruto de resfriados mal resolvidos durante a infância, mas, enfim, o tema da crônica é outro).

Até que no período de pré-adolescência, aquela coisa de abandono das roupas cor de rosa, da coleção de papel de carta e do fechamento sumário do fã-clube do New Kids On The Block, da qual era sócia-diretora, Tânia conheceu um menino de apelido Binho. Tinham, tanto ela quanto ele, onze anos de idade. Não há qualquer informação segura de que aquele tal Binho fosse o Fábio Assunção, mas vá dizer isso para Tânia. Era o maior orgulho da vida dela, ter dado um fora no Fábio Assunção. E alguém que já deu um fora no Fábio Assunção podia, ela imaginava, escolher seus bofes a dedo. E alguém que já deu um fora no Fábio Assunção não podia ser dispensada pelo Linalvo, convenhamos. 

Na ocasião em que Tânia falou pela primeira vez sobre o quase romance que tivera com o Assunção, Linalvo não esboçou nenhuma reação de surpresa, o que a irritou bastante. Na verdade, Linalvo não botava fé na história. Na foto em que a pequena Tânia aparece com a suposta celebridade em idade júnior, não dá para ver nada. Um pedaço de papel amassado - fora o fato de o fotógrafo não ter sido, digamos, muito feliz no enquadramento. De modo que só é possível crer que são Little Tânia e Assuncinho na tal foto baseado no relato da própria, o que é de se desconfiar. Se há, efetivamente, ser humano naquele retrato, ele pode ser qualquer um, o Fábio Assunção ou o Zé Pequeno. Mas Tânia batia o pé que era o Assunção. Por isso, qualquer pessoa que não freqüenta o toalete do boneco com saias gostaria de estar no seu lugar, querido Linalvo, então trate bem de valorizar sua Taninha, ela pensava, inconformada com a indiferença dele, sempre entretido com quebra-cabeças do Cebolinha dando um nó na orelha do Sansão ou o Palmeiras na série B. 

O pior é que Linalvo não era bonito, pelo contrário. Por que diabos ela tinha se apaixonado por ele? Nem ela se lembrava mais. Ah, sim, era porque Linalvo havia sido o único que não a abordara naquela festa em que ela apareceu vestida com uma minissaia do tamanho ideal - para uma adolescente de 12 anos. Linalvo ficara entretido com uma japonesa (parecida com o senhor Miyagi), que mal falava português, insistindo que o nosso Walter Salles era "deveras, deveras superior ao Takeshi Kitano". Na cabeça de Tânia, ela deveria significar na vida de Linalvo uma conquista, um troféu a ser exibido aos amigos. Excitava-se com esta idéia de mulher-objeto, embora, para Linalvo, não fosse. E, não sendo, ela se ofendia. Queria ser desejada, olhada, invejada. Queria que Linalvo se sentisse poderoso apenas por andar de mãos dadas com ela nas ruas. Mas não. Linalvo apaixonou-se por outra. 

- Quem é a prostituta que você arranjou, seu puto desgraçado? - perguntou Tânia, aparentemente não muito preocupada com as chamadas boas maneiras para uma moça de fino trato.

- Você não conhece - devolveu Linalvo, tentando resumir o assunto.

Tânia começou a andar de um lado para o outro, gesticulando muito e falando frases desconexos, invariavelmente acompanhadas por você vai ver, você vai ver. Quando se percebeu um tanto redundante, parou e contou até dez. Então perguntou:

- Como ela chama?

Linalvo achou que não teria problema em responder Fernanda.

- Fernanda? - ela riu alto, destilando ironia - Nome de sirigaita, meretriz. Bem típico de você - completou. 

Fernanda não é nome de meretriz, e por que seria típico de mim?, pensou Linalvo, sem verbalizar isso. 

- Tem foto dela? - ela insistiu.

Linalvo foi na carteira e tirou uma 3x4 do novo amor. Tânia recolheu a foto com desdém e checou. O pior havia acontecido: a outra era lindíssima. Tânia reconheceu em seu íntimo a derrota. A tal Fernanda tinha aquele tipo de beleza que faz a pessoa parecer, além de linda, legal pra caramba. Essas mulheres lindas e legais pra caramba você reconhece de longe, Tânia pensou, e não há nada a se fazer. Era o caso. Mas, na hora de expressar isso a Linalvo, não foi muito original:

- Puto desgraçado. 

Sábio Antonio Maria, que dizia que as mulheres bonitas detestam mulheres bonitas, quando estão gostando muito de um homem feio. 

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