COMPASSO
Míriam Salles

Um dia tudo ficou escuro.
Fez-se noite na esperança,
fez-se silêncio na dança,
e encerrou-se a contra-dança.
Um dia tudo ficou de luto,
e dentro do corpo doído
tudo perdeu o sentido
e começou a desmanchar.

Naqueles dias, nada importava. Os dias passavam como se não houvessem. Dormir era como um pesadelo, sonhar, um desespero. Naqueles dias, só o que sentia era a lerdeza das horas, os ponteiros que nunca paravam de girar. Perdeu a vontade de tudo. Perdeu o ritual diário. Perdeu o desejo de se enfeitar. Viveu cada minuto como se fosse o último, esperando o último alento chegar.

Havia amado muito, muito mais que muito, e o romance acabara por se acabar. Misturado com raiva e desprezo, desespero e sofrimento, tudo chegara ao fim. Simples assim. Um dia havia, um dia não havia mais.

A doença tomou conta tal qual dragão feroz; do corpo se apoderou, devorou e estraçalhou, impedindo o ar de entrar. Mas a vida é poderosa, e teima em se insuflar, e inflar, abrindo todos os poros, enchendo o pulmão de ar.

Ar, ar, respirar. Inspirar e exaurir, expirar e reassumir.

Devagar destruiu o casulo onde se escondera. Lentamente se abriu para o sol. Dolorosamente se entreabriu para a vida, desdobrando as asas do pensamento, desembaraçando-se das peles mortas do amor.

Como borboleta, pôde então voar ao redor de si mesma e se envaidecer das cores que conquistara depois do longo sono.

Um dia tudo ficou claro.
Fez-se silêncio no espaço
para apreciar o compasso
da dança, do ato final.

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