OBSTÁCULOS CULTURAIS
Doca Ramos Mello

Da minha parte, já me decidi, graças a Deus, andava temerosa de que uma emboscada me atingisse, a polícia me batesse à porta exigindo de tudo para me liberar até o pensamento, não quero que os excluídos do MSD - Movimento dos Sem-Diploma -, arranquem meus dentes à unha, pelo amor da graça divina! Tenho família, desejo que se orgulhem de mim.

A partir de agora, quero ser mico de circo se declinar um único plural corretamente, se da minha boca maldita for expelida uma concordância razoável, juro de pés juntos, hei de trocar o "l" pelo "r" (Creide!), direi e escreverei "iscrusive", não me enforquem, clemência, aliás, cremênssia!! E vou mandar queimar aqueles diplomas infelizes que consegui tirar ao longo de uma vida - oh, reconheço, perdão, sociedade! -, de bancos escolares... Eu tenho a dizer, a meu favor, que estudei em faculdades pagas com o suor de meu próprio rosto, mas sei que a Bíblia mudou e não demora a CNBB vai me apontar na rua, me excomungar e minhas mãos hão de secar, o inferno me aguarda, Santa Bárbara! Milhares de perdões, minha gente, companheiros e companheiras, era uma cachaça na minha vida, estudei, sim, mas tenho arrependimentos grandes por isso, quero expiar-me os pecados infindos...

...Porque para além dos tais bancos, dei para fazer leituras extras, ai, Senhor, onde estava com a cabeça?! Sempre adorei ler, de Lobato a Veríssimo, de bula de remédio a jornais, de Byron a Álvares de Azevedo, de Dante a Maria Alice Barroso, oh, minha Santa Luzia, que desperdício de tempo, que coisa mais feia! E olhem, dei para me meter a escrever também, acreditem, foi só juntar b com a e fazer ba para eu sair por aí escrevendo bobagens sem conta, cartas, bilhetes, mensagens variadas, até receitas de bolos, escrevo, escrevo, escrevo, tenho, sempre tive, um baú de letras no cofre da minha cabeça, ai de mim! A gente passa - a gente passamos, heim, heim? -, uma vida inteira fazendo algo sem nunca imaginar que, um dia, aquilo vai se tornar uma coisa muito feia, uma praga, uma arma contra nós, como é que pode? Pois pode porque tudo muda, tudo se transforma, hoje é bom, amanhã é azedo, hoje é certo, amanhã vira uma vergonha...

Isso tudo é passado, agora. Sinal verde p'ra mim, iluminadíssima! Estou-me alistando no MSD, quero assentar-me através do movimento e depois a gente vê como é que fica. Quem sabe seja chamada para um cargo público relevante, vou analisar as propostas... De repente, me candidato a qualquer coisa, subo no palanque e falo um bando de coisa sem acertar uma única regência verbal, invento aí umas expressões bem ao gosto popular, umas metáforas, sou boa de metáfora, acreditem em mim, e pronto. Chega de bater de porta em porta com esses diplomas malditos que não servem para nada além de me botar na turma dos elitistas, os pernósticos, os burgueses, "isso tudo que está aí", me entendem? Estou vendo a hora de um sujeito aparecer dizendo, por exemplo, que é engenheiro, e o pessoal começar a se afastar ou então cair de pau em cima dele, vagabundo, ordinário, cafajeste! Agora eu sei o vexame que FH passou, andando pelo mundo de casaca e exibindo até língua de estrangeiro na fala, ô indecência, por isso mesmo o país se atrasou ainda mais, quanto mais o homem falava e lia, mais a gente ia p'ro buraco, Jesus! O estrangeiro gosta de folclore, de caboclo sem instrução, aí ele acha engraçadinho, tem paciência, chama todo mundo p'ra ver, dá esmolas até... Se tiver vermes e dentes podres, então, aleluia!

Eu, com a bênção do Senhor, nunca cheguei aos pés de FH, tenho aí uns diplominhas nacionais mesmo, coisa pouca, não conheço a Sorbonne, Deus me livre, e aqueles que dizem que falo inglês mentem feio, no máximo um how do you do, só para criar um clima, não me confundam! 

Estou aprontando a minha integração ao MSD. Já comprei a barraca e devo me postar no gramado dos jardins do Alvorada, onde pretendo dar entrevistas trocando o significado dos vocábulos, desculpem, das palavras, não pretendo acertar uma única oração inteira, sorrirei para as câmeras e pedirei uma aposentadoria especial, casa, carro, convênio médico, etc. Vamo que vamo, cumpanheiros de luta, que a vaca baba purque não tem lenço! Salve, rainha, mãe de miseridiscórdia! (Ficou bonito?).

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