TARSO E METATARSO
Erazê Martinho

Ninguém notava que Ana Maria fazia freqüentes confusões de palavras, quando falava a respeito de pés. Ninguém exceto um psicólogo amigo, que dizia se tratar de um caso comum de ato falho. Por ter pés chatos, algum mecanismo de defesa entrava em ação, sempre que a professora de Educação Física deveria pormenorizar os movimentos de ginástica envolvendo a região defeituosa — que, aliás, nem era nada grave, apenas o arco do pé menos acentuado do que o considerado normal.

"Agora estamos alongando a região do calcanhar", dizia ela aos alunos, enquanto fazia movimentos pra relaxar a articulação do tornozelo". Ou então: "Esta massagem, feita com movimentos circulares dos polegares na planta do pé, ajuda a relaxar toda esta região do tornozelo". Exceto por esses pequenos deslizes, Ana Maria era uma professora exemplar, reconhecida inclusive pela particularidade de, ao ensinar exercícios de ginástica localizada, informar os nomes científicos dos músculos exigidos em cada movimento. E sempre que possível dizer também a denominação popular: panturrilha era a batata da perna, deltóide era o músculo da vacina e assim por diante.

Outra marca de sua performance era a surpreendente flexibilidade do corpo, incomum — ou no mínimo surpreendente — em pessoas com seu biótipo, meio barroco, segundo ela mesma denominava. Essa combinação de físico gordinho com agilidade lhe dava uma graça especial, o que lhe valeu o convite pra apresentar um programa de ginástica pela televisão. Nada de aeróbica ou outros malabarismos. Um programa pra pessoas de todas as idades, especialmente donas-de-casa de vida sedentária, a quem a rede educativa de televisão queria atingir, em nome da defesa da saúde pública. Ana Maria apresentaria aulas ministradas ao vivo, em 25 minutos — a duração do bloco de ginástica, dentro de um programa de duas horas, que incluía culinária, corte e costura, arranjos florais, decoração e economia doméstica. Da parte da emissora, Ana Maria contaria com um estúdio especialmente decorado, onde três câmeras mostrariam os movimentos da professora enquanto, no rodapé da tela, correria um letreiro com os nomes dos músculos exercitados, previamente informados por ela à produção do programa. Além da projeção profissional que a televisão lhe daria, o salário oferecido, comparado ao de professora, dobraria sua renda mensal. 

Afora o dia da estréia, quando o sincronismo foi perfeito, em nenhum dos dois programas seguintes os músculos citados ao vivo por Ana Maria coincidiram com os das legendas. No segundo programa, depois do terceiro erro, a aula foi interrompida pela apresentadora que, seguindo ordens do diretor, simulou um descabido interesse pela flexão que Ana Maria executava e iniciou uma entrevista improvisada, sem nexo, absurda. No terceiro programa, nervosa com o sucedido no dia anterior e ao perceber que errara novamente, Ana Maria foi acometida de fortíssima câimbra nas solas dos pés. Um mal sem nenhuma explicação biológica, que até hoje a obriga a andar de cadeira de rodas.

A ação judicial movida por ela contra a emissora lhe garantiu renda suficiente pra associar-se ao fabricante de cosméticos, patrocinador do programa de sua xará, Ana Maria Braga, levado ao ar pela Rede Globo, no mesmo horário daquele da TV educativa, mas com audiência oito vezes maior e responsável pelo sucesso de venda do sabonete de lama medicinal que, além de beleza, oferece energia muscular aos usuários, especialmente donas-de-casa, de vida sedentária. 

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