HELOÍSAS E OSVALDOS
Mariazinha Cremasco

Numa bela manhã de sol eu dirigia por uma estrada conhecida. Parecia a Raposo Tavares, mas eu não tinha certeza. Descalça, encarava os pedais. Mal vestida, roupa surrada. O carro novinho, ar condicionado. No banco do carona, um travesseiro. E lá ia eu, depressa, procurando a casa. O que fazia descalça? Caramba. Como é que não tinha pensado em calçar um chinelinho, que fosse? E vestido uma roupinha menos surrada?

Encontrei a casa sem dificuldade. Era muito cedo. Jamais pensei que haveria alguém alí. Queria apenas dar o recado ao dono da casa e ir embora o mais rápido possível. Abriram o enorme portão de madeira. Entrei com o travesseiro dobrado debaixo do braço e, para meu espanto, àquela hora da manhã, vi muitas pessoas reunidas. Mulheres bonitas, todas altas e magras, todas louras e de olhos claros (se todas tivessem o mesmo nome, aposto que seriam Heloisas). Os homens, igualmente bonitos, vestiam sóbrios ternos azuis-marinhos (Osvaldos, talvez).

E eu ali, descalça, com o travesseiro sob o braço. Não dava mais para recuar. Teria que enfrentar. Todos já tinham me visto. A dona da casa beijou-me e convidou-me para sentar-se com eles. Eu não queria, mas não tive outra saída. Ela – a dona da casa – pediu-me que colocasse meu travesseiro ao lado dos bolos – havia muitos, bonitos e enfeitados, colocados em uma espécie de banco longo e bem baixinho. Obedeci, sem imaginar qual o sentido do meu travesseiro estar no meio de tantos bolos. Seriam para o lanche?

Eu olhava, desesperada, querendo encontrar o dono da casa e dar-lhe o recado. Ah, meu Deus, o que fazia ali, descalça, como tinha me metido nessa enrascada? Olhei sobressaltada, sem prestar atenção àquela espécie de reunião, procurando com os olhos o tal homem. 

Ele apareceu. Sem saber direito como, desvencilhei-me daquelas mulheres parecidas e fui ter com ele:

- Recebi o telefonema. Você precisa pagar, ou, além de não entregar, eles vão denunciar você.

O homem respondeu entre dentes:

- Amanhã eu te ligo. Vá embora!

- Mas eu vim até aqui porque eles estão te ameaçando.

- Vá embora. Eu ligo amanhã, já disse (ele não usava terno azul marinho. Era o dono da casa, mas parecia um jardineiro, não um Osvaldo).

O homem atravessou comigo toda a extensão do recinto em que se dava a reunião (que ódio por ter vindo - descalça, ainda por cima, e com aquele travesseiro encardido), rebocando-me gentilmente pelo cotovelo, como um bom segurança. 

Quando já estava na porta, a dona da casa (que também não tinha nada de Heloísa), esposa do homem a quem eu levara o recado, alcançou-me e disse, com muita delicadeza:

- Maria, seu travesseiro ganhou dois votos. 

- Heim?

- Sim, pela criatividade. Sugere descanso, entende? Foi votado. 

- Ah, obrigada.

Os bolos estavam sendo votados, então. E aqueles estranhos deviam ser todos intelectuais. Imagine um travesseiro encardido, dobrado, sendo votado num concurso de bolos por criatividade e por sugerir descanso. Coisa de artistas mesmo, que vêem beleza em tudo. A essa altura, o fato de eu estar descalça deveria ser uma coisa maravilhosa. Mas então por que eram todos tão bem vestidos e tão parecidos?

O homem fechou o portão, e eu fui até o carro, agora sem o travesseiro - que ficara para o concurso - e com muita raiva. Como ele podia fazer aquilo comigo? Andara todos aqueles quilômetros para lhe dar um recado e ele me recebia assim? E aquela louca da mulher dele? Ele tinha jurado que ela estava meio atrapalhada das idéias, mas parece que as reuniões eram para reativar sua memória, para reintegrá-la novamente à sociedade. Coisa mais maluca.

Saí andando, descalça, agora pisando no barro. Sim, do lado de fora da imensa casa, o condomínio tinha ruelas de barro. O carro parecia tão longe...

No caminho de volta, vi uma mulher que tentava desesperadamente mandar para trabalhadores, que estavam no alto de um prédio, marmitas de comida. Mas as marmitas tinham velas acesas e pegavam fogo a cada tentativa de mandá-las para cima. A burrice da moça irritou-me e resolvi me meter. 

Desci do carro, arranjei cordas, lençóis, trapos e montei uma espécie de manivela, que nem eu mesma entendi e, num minuto, os operários saboreavam o almoço. Julguei que fossem ficar agradecidos, felizes com o que fiz e fiquei ali, parada, descalça, olhando os trogloditas a comer. Eu merecia uma gorjeta pelo bom trabalho, tinha noventa reais na carteira, e um dinheiro melhoraria minha situação, mas que nada. Continuaria apenas com os malditos noventa reais. 

A raiva de não ver meu trabalho reconhecido pelos operários juntou-se à raiva do dono da mansão, um mal agradecido, que ainda por cima devia ter problemas com o fisco, ou quem sabe, com a máfia. O mundo era mesmo composto de pessoas más e mal-agradecidas. Entrei novamente no carro - descalça, sem o travesseiro, sem gorjeta - e voltei para casa. 

* * * * *

[Nota de rodapé: isso tudo foi um sonho, sonhado na noite de sábado para domingo, 9 de novembro de 2003, na Praia Grande, tendo uma grande amiga como testemunha da fúria da autora ao acordar]

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