DA MOSCA E DA MENINA
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A mosca morava no quarto sem se fazer notar. Já fazia mais de um mês que não saía para a rua, nem mesmo para o corredor do apartamento. Gostava de ficar no quarto, pousar na poeira esquecida da TV, na luminária apagada, no livro de José Saramago deixado em cima da prateleira, no casaco pendurado na porta entreaberta do armário.

Num dia de chuvisco, entrou sem querer no apartamento, pela janela, atraída por um aroma suave. Era mosca, mas tinha nascido com a capacidade incomum de sentir cheiro e de ouvir conversas alheias. Meio mosca, meio gente, bisbilhoteira e acomodada. Entrou pela fresta aberta da janela da sala, seguiu o agradável aroma e foi parar num dos quartos. Lá queimava um incenso, posicionado estrategicamente em cima da TV, de onde o cheiro se espalhava para todos os cantos. A casa estava vazia. 

No quarto, os objetos funcionavam em harmonia, quietos. Sem perceber a existência um do outro, permaneciam, perenes no tempo, alguns esquecidos pela dona há muito, outros constantemente manuseados. Eram imunes ao mundo. 

A mosca passou a tarde sobrevoando o apartamento, conheceu os outros cômodos, mas escolheu o quarto do incenso para repousar as asas. Não sabia ainda, mas tinha entrado no quarto da menina de olhos cor de mel e dos cabelos emaranhados, que exalava sempre um cheiro fresco de banho tomado. 

As duas, mosca e menina, conheceram-se no mesmo dia, à noite. A mosca levou um susto, porque foi passear pela cozinha atraída pelo cheiro de comida e quando voltou deu de cara com a menina esparramada na cama, controle remoto em punho, zapeando a TV. No início a mosca ficou ressabiada, sentiu-se invadida. Aquietou os pensamentos quando se deu conta de que a menina era, muito antes, dona daquele quarto. 

As duas cruzaram-se no caminho pela primeira vez lá pela meia-noite, hora de descansar corpo e mente para o dia seguinte. A menina se irritou com a presença da mosca em seu quarto e logo abriu janelas e portas para que ela procurasse outro abrigo - menos ali, seu quarto que era só seu. Mas a mosca não ia embora. E a menina enxotava-a como a um inseto (e não era mesmo?), então a mosca resolveu se esconder temporariamente embaixo da cama. 

Passou dias se escondendo da menina. Ficava livre quando ela saía para trabalhar ou estudar. Então sobrevoava aquele quarto toda faceira, pousava nos objetos, puxava assunto com o urso de pelúcia, esparramava-se na colcha sobre a cama, andava em passinhos pelo carpete e às vezes embolava-se num fio de cabelo esquecido no chão.

Aos poucos a mosca foi perdendo o medo e parou de se esconder. A menina se acostumou com a presença do bicho e passou a não se importar. Achava engraçado aquela mosca ali, prisioneira de uma força oculta, recusando a liberdade do céu azul do lado de fora. Mas compreendia e a deixava ficar. 

A mosca não cabia em si de felicidade. Morria de prazer assistindo os rituais da menina ao se levantar, vagarosa e sonolenta. Compartilhava os momentos de distração barata na TV, ficava sobrevoando a superfície invisível de ar que a separava de sua menina. Era capaz de passar horas pousada sobre a persiana marrom, apenas esperando o Sol baixar e chegar a noite, para junto chegar a menina cansada de um dia inteiro. E então a menina era só dela. Não gostava quando a menina se punha a ler, compenetrada, inerte a qualquer movimento alheio. Começava a voar como uma louca, sobrevoava o seu rosto, queria chamar atenção. 

A relação não era de cumplicidade, porque a mosca cultuava sozinha aquele amor. Extasiada de paixão, mas completamente sozinha. Incompreendida também, porque ninguém notava que ela era uma mosca diferente, podia ouvir as conversas, podia ver, sentir, cheirar. Tudo em vão. Ninguém notava, nem mesmo a menina.

E foi no auge da paixão que a mosca sofreu. Pegou uma conversa da menina ao telefone. A voz suave estava mais suave e o sorriso branco estava mais sorriso. A menina irradiava felicidade pelos olhos, ofuscava o mundo, estava apaixonada. Passava horas ao telefone, dava risadinhas histéricas, sussurrava declarações indecentes, fazia beicinho, fechava os olhos e suspirava de amor. 

Para a mosca foi um tiro certeiro. Voava cabisbaixa, pensava em ir embora, chegou a tentar suicídio. Desistiu no hora H, porque lembrou da menina deitada na cama, esparramada em sua preguiça, acordando baixinho para um novo dia. Então a mosca sorriu um riso de mosca e deixou de lado a idéia tétrica. 

O pior dia de sua vida foi quando o namorado entrou no quarto da menina. A porta se abriu num tranco e o casal invadiu o recinto como um tufão, em meio a beijos tórridos e abraços abusados. E o namorado, num gesto brusco, jogou a menina na cama, nua. A mosca perdeu o controle e voou pra cima do namorado, que nem percebeu. Amaram-se a tarde inteira, dormiram lado a lado, e a mosca chorou sozinha, pousada na blusa esquecida no chão.

O tempo foi ficando insuportável para a mosca, que ensaiou diversas vezes um vôo certeiro para o céu azul. Faltava coragem. Até que um dia a menina chegou chorando, os olhos inchados e vermelhos, o sonho desfeito, o coração em frangalhos. Tirou a roupa e se enfiou nas cobertas sem mais razão. Chorou até anoitecer e adormeceu afogada em lágrimas. A mosca soube logo de tudo. Esperou a menina adormecer. Pousou de leve em sua face. A lágrima, já seca, tinha deixado um rastro de tristeza do olho esquerdo até o queixo. A mosca passou a noite ali, percorrendo devagar a pele macia. 

Amanheceu um dia de Sol. A menina, renovada da noite de sono, abriu a janela e respirou o porvir. A mosca, refastelada de contentamento, enrolava-se nos lençóis perfumados da menina. O telefone tocou e tocou e a menina não quis atender. O som ecoava na casa inteira. A solidão fazia bem para ela. Mal sabia que não estava sozinha.  

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