A FATÍDICA CRÔNICA DE UM DIA SEM NUVENS
Edison Veiga Junior

1. Solitários Apontamentos

Da solidão das coisas inertes neste quarto escuro como noites sem estrela nem lua, restou apenas uma fotografia sua, amarelada já, num cantinho da memória, e o seu cheiro ainda impregnado em meus poros, minha pele.

Quando bate a saudade e eu aqui sempre sozinho, o que faço é desfolhar pela enésima vez o gasto Neruda que gosto, que carrego, não nego, desde que fomos um em nossa ambivalência ambígua de sermos ambos. 


2. (...)

Reticências esparsas são a única coisa que colorem o seu céu, tão desanuviado quanto esquálido. Um quê macilento que pousa no ar, feito pássaro sem asas, feito cão sem dono ou outra bobagem qualquer. Preciso mesmo aprender um pouco de francês.

No meio do caminho tinha uma pedra, mas eu chutei a pedra. Na verdade eu chutei o caminho e agarrei a pedra com unhas, dentes e um pouco de língua. Depois sai por aí festejando o enterro de alguém como se morrer fosse a única graça da vida. 

Fumei um charuto cubano imaginário e as fumaças bem que tentavam, mas também não conseguiam virar nada parecido com nuvens nem nada. Peguei a pedra que agarrei com unhas, dentes e um pouco de língua, e joguei pela janela batendo na cara do vizinho careca e careta que ri dos mortais. Ele me mostrou a boca banguela, e vi que também não tinha língua nem garganta nem esôfago (acho que não tinha nada: nem estômago, mas não deu pra não ver!). 

Eram 4 da manhã quando percebi que o sonho havia terminado e então pude começar a dormir. Olhei para as estrelas do sem-teto do meu quarto e cuspi pra cima do sorriso falso de cada uma delas, só pra desafiar a lei da gravidade e outras coisinhas mais. Cuspi pra cima e caiu na minha cara. A lei da gravidade é inexorável. 

O telefone tocou e era um coração palpitando do outro lado. Pronto, jamais conseguirei dormir no buraco do meu sono estranho e um pouco sentimental. Que tal ligarmos o som para curtirmos dançando na chuva este restinho de madrugada inerte? 

Penso que às vezes sobra poesia e falta coisa séria. Mas aí é que é bom, e o mundo tenta ficar cada vez mais belo, ainda que depressivo. E é tão démodé escrever versos para compreender e complicar ainda mais o universo molhado que nos circunda. Penso em Deus e sua imensidão difícil de caber. Penso no amor e sua mania intrínseca de ser incabível. Penso na saudade e no já era. Já era.

Fumei outro charuto imaginário, mas agora era do Paraguai mesmo e tinha um gosto horrível além do cheiro que não apeteceu aos meus companheiros de jornada, todos mortos. Perguntei para Beethoven se ele tinha raiva do Van Gogh:

- Hein!? Hein!? Sou surdo e não ouço nada.

Claro que eu só queria que ele xingasse o Van Gogh de egoísta por decepar as orelhas enquanto todos sofrem de surdez. Mas tudo bem, tudo bem, eu rabisco o sol que a chuva apagou e ninguém percebe a intertextualidade embutida. Coisas do coração. 

O telefone tocou de novo mas não atendi porque a linha já estava ocupada por mim mesmo. Aí chegou o trem em Bauru e me atropelou na linha, vermelha. Sangue.

O telefone tocou de novo mas às vezes eu faço que odeio telefone e às vezes adoro. Acho que depende de quem liga. Tudo não depende do ponto de vista, sim da maneira de pensar. O agora já era, já era. Já era.

Eram 5 da manhã quando percebi que era melhor não dormir mesmo. Assim poupava o esforço de me acordar no dia seguinte e não ia ficar brigando com o maldito despertador.

Fumei outro charuto imaginário, sem nacionalidade nenhuma, porque meu estoque de charutos imaginários já tinha se acabado. Então não fumei, ou fumei somente porque era imaginário. Deixei minhas unhas crescerem em pensamento e, com elas, pude furar todas as embalagens de algodão-doce existentes na minha memória de criança.

De repente do riso fez-se o pranto silencioso e branco como a bruma e das bocas unidas fez-se a espuma e das mãos espalmadas fez-se o espanto. Senti brotar na minha lapela um botão de rosa e comecei a pensar em me mudar para Hollywood onde posso ver as estrelas de cinema brilhando no seu céu. 

De repente da calma fez-se o vento que dos olhos desfez a última chama e da paixão fez-se o pressentimento e do momento imóvel fez-se o drama. E então fui para Hollywood porque se os charutos imaginários há muito se extinguiram restam-me somente os maços vermelhos de Hollywood. 

De repente, não mais que de repente fez-se de triste o que se fez amante e de sozinho o que se fez contente. Eu sentei-me na borda externa das asas do avião e chorei. Talvez já era hora de voltar ao Brasil.

Fez-se do amigo próximo o distante fez-se da vida uma aventura errante de repente, não mais que de repente. 

Eu só quero minhas nuvens de volta.

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