SAUDADE DA LUZ
Jorge Gomes da Silva

A escuridão predominava no espaço que a rodeava durante quase todo o tempo que a sua existência durou. De vez em quando o sol espreitava por entre as frinchas do telhado e iluminava o pó suspenso no ar. Era uma alegria que lhe trazia à memória as imagens do tempo em que a sua existência era banhada pela luz.

Do princípio só recordava a aflição e a dor. A mulher bonita que chorava e as duas crianças que abraçava, gritos estridentes de uma tristeza que aos poucos se transformaria numa desconfortável resignação. Aos poucos, a terrível saudade que transparecia dos olhares que a fixavam abrandou. Aos muitos dias de lágrimas vertidas em segredo sobrevieram os dias da determinação.

A mulher bonita deixaria de chorar e as duas crianças, mais crescidas, também. Sorrisos surgiam a espaços nos rostos, como os raios de luz que venciam a barreira opaca de telhas para anunciarem uma vida ansiosa de quem a quisesse desfrutar. A felicidade que lembrava era feita desses instantes em que via as duas crianças sorrir, ainda que alheias à sua presença na sala.

Aprenderia a conviver com as novas pessoas que partilhavam a casa com a mulher bonita, grisalha, e com as duas crianças, adultas, que um dia deixariam de aparecer com tanta frequência naquele lugar.

A mulher bonita, velhinha, acabaria sozinha a ver televisão no sofá até ao dia em que abraçaria a testemunha muda do fim pela última vez. Assim as encontrariam dias depois e as lágrimas voltaram nos rostos das duas crianças, grisalhas, e das novas crianças com elas parecidas que chamavam a mulher bonita de avó.

Depois veio o silêncio, até ao dia em que a enfiaram numa caixa de papelão e a levaram para o espaço escuro que a rodearia desde então. A vida passaria a acontecer-lhe debaixo dos pés, ouvida nas vozes distantes das pessoas que a ignoravam enquanto choravam e sorriam vivendo à parte de si. Foram anos assim, quantos não sabia. E como nada via, pensava. E foi a pensar que descobriu a solidão.

As duas crianças pequenas, envelhecidas, desapareceram do grupo de vozes que se ouviam e as crianças com elas parecidas acabariam por desaparecer também. Restaram apenas os sons distantes de vozes que desconhecia até nenhuma voz se fazer ouvir. Pensou que enlouquecia à medida que percebia que a sua existência dependia da memória de alguém. A solidão insinuou-se assim, sob a forma de um raciocínio deprimido numa noite de temporal em que uma parte do telhado abandonado voou. Ninguém apareceria para o reparar porque já ninguém se interessava pelo que acontecia ao espaço vazio em que as coisas se amontoavam sem nexo por não haver quem lhes reconhecesse uma utilidade ou função. A estrutura degradada que as acolhia transformar-se-ia no esqueleto de uma mansão e por fim desabaria numa derradeira nuvem de pó.

Espalhadas pelo vento de entre os destroços, as coisas sem nexo deixadas ao relento à mercê do esquecimento começaram a esboroar-se em pedaços pequenos de vidas passadas, ininteligíveis aos olhos de quem não as podia compreender. Contudo, a velha moldura resistiria e com ela a fotografia de um homem antigo, outrora marido de uma bonita mulher e pai de duas crianças absolutamente desconhecidas para o proprietário futuro do terreno baldio, seu descendente, que sem hesitar a incinerou.

fale com o autor

Para voltar ao índice, utilize o botão "back" do seu browser.