A SOLIDÃO DA VIDRAÇA
Luiz André B. R. Cavalcante

Da solidão das coisas nós, humanos, entendemos muito pouco. A Cecilia Meireles, por exemplo. Sua reconhecida sensibilidade não lhe permitiu ver em detalhe a solidão das coisas. Explico. Ela escreveu uma crônica chamada "Da Solidão". A crônica, entretanto, era sobre a solidão dos homens. Dizia mais ou menos o seguinte: se você se considera solitário, aprenda a olhar para as coisas. Elas podem lhe fazer companhia. Só esperam que você lhes ofereça um olhar compassivo e amigo. 

Assim é que as coisas, segundo Cecilia, podem nos retirar da solidão. As coisas e também os nossos pensamentos, idéias e lembranças. Mas voltemos às coisas. Eu disse que a fina sensibilidade da poetisa não foi suficiente para que ela visse a solidão das coisas (não, pelo menos, em profundidade). Ela diz: "Olhemos devagar para a cor das paredes, o desenho das cadeiras, a transparência das vidraças, os dóceis panos tecidos sem maiores pretensões". Aí eu digo: Cecilia tem razão. Mas e as coisas? Cecilia viu a solidão das coisas? A solidão da vidraça, Cecilia viu? Porque a solidão da vidraça é algo pungente. Reparem que a única função da vidraça no mundo é permitir que a gente veja através dela. Haverá solidão mais humilde e discreta? A gente vê através da vidraça. E só vê a vidraça, ela própria, quando está suja.

De cara, posso fazer uma listinha de coisas solitárias. Nem todas pertencentes à mesma categoria. Há, por exemplo, coisas solitárias por sua própria natureza e coisas solitárias por distração humana. Não vem ao caso classificá-las agora, só mencioná-las: protetor solar esquecido na areia da praia; brinco abandonado em criado-mudo alheio; o criado-mudo; chinelos antigos; clipe que caiu no chão e ninguém viu; quadro cafona na parede; colchão usado; revista velha em consultório odontológico; livro que ninguém lê; tapete; flores de plástico na mesa; pingüim sobre a geladeira; cabide. E, hum, lastro de cama.

Certo: deve haver uma porção de outras coisas solitárias - todas silenciosas, esquivas e quase invisíveis. Isso também não vem ao caso. Vem ao caso, e é grave, que só se fala da solidão humana. Vamos ver Cecilia novamente: "Oh, se vos queixais de solidão humana [taí], prestai atenção, em redor de vós, a essa prestigiosa presença, a essa copiosa linguagem que de tudo transborda, e que conversará convosco interminavelmente".

Mas e as coisas? Que fazem as coisas quando se sentem solitárias? Que farão "os metódicos telhados" quando se sentirem sozinhos? Nada. As coisas não têm como chegar a nós. Estão presas, mudas. Condenadas à discrição. Mesmo assim, desconfio: às vezes se expressam. A topada numa cadeira, por exemplo. Tínhamos certeza de que aquela cadeira não deveria estar ali. Se acreditássemos na vida e na inteligência das coisas, diríamos que a cadeira atravessou o nosso caminho de propósito - o que não é possível. Ou é? 

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