ESPERANÇAR
Ly Sabas

Lembro como se tivesse acontecido ontem. Foi a última vez que tocamos em sua ferida. Não sei até hoje se conseguiu cicatrizá-la em definitivo ou se, simplesmente, a amorteceu. Tínhamos passado o dia falando somente amenidades. Das últimas leituras, dos filmes, de nossas filhas e até de congelados. Só ao cair da noite é que procuramos a discrição da varanda. Fomos saldadas pelo grilar insistente de um inseto.

— Às vezes chego a pensar que ele acompanha meus devaneios. 

Disse enquanto dirigia-se, com seus gestos medidos e delicados, em direção às confortáveis cadeiras. Sempre achei fascinante seu jeito flutuante de andar, mas naquele instante me passava a impressão exata de que se movia como um pássaro ferido, procurando não despertar os sentidos de algum felino a espreita. 

— Sento aqui ou no beiral da calçada, e sempre tenho a companhia de seus ruídos. Ás vezes delicado, em outras irritante, é o fundo perfeito para o tumulto de meus pensamentos. 

Acendeu um cigarro e esticando o braço, convidou-me a sentar. 

— Quase que diariamente termino meus dias aqui. Mamãe fazia o mesmo, dizia que saturava a alma com o perfume das plantas — completou com nostalgia e abaixando o tom de voz segredou — Não tenho sido muito boa nisso! 

Deu sua risada rouca, mas não havia graça em seu olhar. 

— É o fantasiar... é o flutuar... é o esperançar... — disse levantando-me e me posicionando em suas costas. Essa frase tinha se tornado uma espécie de código nos últimos meses. Massageei um pouco seus ombros tensos e pesando bem as palavras continuei:

— Você anda procurando com tamanho afinco um compartilhar, que já não consegue mais separar a fantasia do ponderável. — lembrei-me, meio envergonhada, que já havia usado o mesmo argumento para tentar apaziguar o coração de outro amigo. — Creio que já não pesa mais as palavras com a verdadeira importância e poder de que elas são capazes. 

Remexeu-se um pouco na cadeira, abriu e fechou a boca algumas vezes e, pelo arfar de seu peito, avaliei o esforço que fazia para manter-se calada. Desisti de seus ombros e passei a acarinhar seus macios cabelos escuros. 

— Ultimamente passou a absorver cada elogio como uma esponja. Depois embarca na ilusão que essas palavras criaram, sem dar a mínima para o seu agudíssimo senso crítico. 

Depois de uma pequena pausa, na qual com bravura, manteve o silêncio continuei:

— De todos os turbilhões pelos quais você já passou, esse parece ser o que a está deixando mais fragilizada. Talvez por querer reverter o que está fora de suas mãos, sofre como o artista que perdeu o controle das marionetes. Os birrentos bonecos tomaram conta do espetáculo e, com vida própria, dão um final diferente à sua história.

Parei de acariciar seus cabelos e voltei a sentar. Ela nada disse e ficamos alguns segundos admirando o vôo de uma borboleta amarela até que saiu do mutismo: 

— Sinto-me, às vezes, exatamente como ela, à procura de algo que não sei o quê é. — com um ligeiro suspiro, imitando minha voz tornou — É o flutuar...

Rimos. Segurei sua mão:

— Sinto-me culpada por seu sofrimento — afastei com uma leve pressão dos dedos a contestação esboçada — É como se sempre lhe desse corda. Nunca achando nada impossível, ou inaceitável... Creio mesmo que você pode tudo! Que tem o dever de lutar, seja como for, para ser feliz e o direito de escolher o seu caminho, sem pedir opiniões... É isso que passo para você e depois me culpo. 

— Não faça isso, eu é que amei tanto que sinto como se tivesse parido o próprio AMOR — falou com ênfase, contraindo meu coração — E foi um parto tão sofrido que o nascimento resultou só em dor! 
As lágrimas que brotaram, impedidas de correrem, ficaram boiando, aprisionadas em sua voz. 

— Passei anos lutando contra a solidão, tentando encontrar o equilíbrio entre o que ansiava e a satisfação com o que tinha. Mas ela nunca se deixou dominar. Sempre que uma brecha se fazia, mostrava-se de várias formas. No cigarro fumado sem o prazer do depois, no pôr-do-sol solitário, na única escova dentro do armário, nos livros lidos sem comentários, nos textos inacabados, nos jantares sem velas, na toalha molhada nunca jogada sobre a cama... 

Novamente o silêncio se fez presente por alguns segundos. Eu não sabia mais o que lhe dizer. Já havia esgotado todos os argumentos no auge da separação. O olho do furacão já havia passado e, agora, só estava interessada na recuperação dos destroços. Queria vê-la inteira novamente. Mesmo que isso significasse a volta à liberdade forçada. 

— Durou pouco minha vitória sobre ela. Mas foram meses plenos. De material farto para a cadeira de balanço. E estou preparada para o reinício da luta. Mas não espere de mim o não esperançar!

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