AMOR URBANO
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O começo de tudo foi lá no começo da Av. Brigadeiro Luiz Antônio, perto da Catedral da Sé. Já tinham cruzado olhares disfarçados, mas trocaram palavras pela primeira vez numa noite paulistana de chuvisco. Ela estava parada na porta do prédio antigo, onde trabalhava. Procurava o isqueiro para acender o cigarro de final de expediente quando viu que ele se aproximava. Sentiu um leve disparar no coração, deve ter ficado vermelha porque ardeu o rosto quente, mas disfarçou como pôde, abriu um sorriso desinteressado e disse "oi". Ele, que estava de passagem, parou e soltou o seu melhor sorriso. Perguntou para onde ela ia e prontificou-se a acompanha-la, não por cavalheirismo, mas porque ia para o mesmo lado. Foi a primeira vez que caminharam lado a lado naquelas ruas do centro. Ela, emocionada ou nervosa, acendeu o cigarro ao contrário e quase pôs fogo nos cabelos. Ele, falando sem parar para impressioná-la, nem percebeu o vexame e seguiu em frente. Falava sobre o casaco que vestia. A avó tinha dado de presente. 

Depois deram-se beijinhos no rosto, disseram até logo e cada um seguiu seu rumo. Ela subiu no ônibus - o Cidade Dutra - , pensou nele por alguns instantes e logo dispersou a atenção para o livro que vinha lendo, O Amor dos Tempos do Cólera, de Gabriel García Márquez. Era seu autor preferido desde que lera Cem Anos de Solidão, para ela um clássico imbatível. Identificava-se nas palavras do escritor colombiano, vivia as histórias como se fossem suas, arrepiava-lhe os pêlos as frases adjetivadas. Ele seguiu a pé, para a faculdade de publicidade. Levava na cabeça aquela imagem de mulher e o perfume inebriante que ela sequer usava, mas exalava naturalmente quando andava e balançava os cabelos crespos.

A segunda caminhada aconteceu depois de um convite dele. Tomara coragem, depois dos sinais positivos dela, para convidá-la a um recital no Teatro Sérgio Cardoso. Era centenário de Drummond, ela amava o poeta, ele nem tanto, preferia Mário Quintana. Mas convidou-a mesmo assim, só para impressionar. Seguiram caminhando, do centro até a Rua Rui Barbosa. Iam conversando, ela toda sorrisos, mas ligeiramente displicente, tentando mostrar que não tinha nenhum interesse romântico quando aceitou o convite. Ele caminhava em passos largos e observava a mulher ao seu lado em estado de encantamento. Assistiram ao recital sentados lado a lado. As pernas dele roçavam as pernas dela, quase sem querer. Trocaram bilhetes e palavras. Ele tentava cochichar-lhe no ouvido, mas sua voz grossa não conseguia ser sutil. Ela ria do barulho que ele fazia e sentia um arrepio cada vez que aquele som invadia, sem a menor licença, o seu ouvido esquerdo.

Aquela noite terminou em mais uma caminhada, dessa vez até a Av. Paulista. Andavam em passos curtos, sem pressa, com medo que a noite chegasse ao fim. Enquanto andava, ele lia para ela trechos de Macunaíma, de Mario de Andrade. Pediu que ela o guiasse na caminhada para não tropeçar enquanto lia. Ela comprimia os olhos e ria sem parar, sem deixar de prestar atenção em alguma pedra no caminho.

Já na Paulista, andavam mais perto e mais íntimos. Risadas cúmplices e olhares maliciosos denunciavam o porvir. Trocaram o primeiro beijo em frente ao banco, iluminados pelas luzes comerciais. Foi estranho como todos os primeiros beijos, mas foi bom, porque ambos abriram os olhos com um sorriso. Seguiram caminhando até o metrô Trianon-Masp. Separaram-se nas escadas de acesso com o segundo beijo. 

Depois disso, repetiram inúmeros beijos na Paulista, durante encontros fortuitos no meio da semana. Iam caminhando até a Rua Augusta, comiam yakissoba preparado nos carrinhos ambulantes dos chineses, abraçavam-se no vão do Masp, freqüentavam sebos e livrarias, compravam livros em parceria, faziam planos para o dia seguinte. No metrô, trocavam abraços quentes enquanto a plataforma não recebia o próximo trem. Ela ia para a zona Sul e ele para a Norte. Quem pegava o trem primeiro era ela. Ele a acompanhava e sempre que via o trem partir saía correndo pela plataforma, com o semblante desesperado, fingindo que podia alcançá-la. Ela ficava rindo sozinha, achando graça na graça do seu amor. 

Um dia eles cansaram de se despedir, saíram do cinema e se hospedaram num daqueles hotéis disfarçados que recebem casais afortunados no meio da noite, lá no bairro do Paraíso. Coincidência ou não, o paraíso era ali mesmo, no quarto vagabundo. Ficaram encabulados na primeira vez, porque um dos estabelecimentos trazia na porta os dizeres "ambiente familiar". Acharam melhor bater em outra porta. Passados alguns meses, conheciam todos os hotéis da redondeza. 

Quando não podiam nem cinema, nem hotel, passavam o tempo recostados sobre a banca de jornal, em frente ao Largo São Francisco, esperando o ônibus dela chegar ao ponto. Se chovia, apertavam-se de propósito para caber, os dois juntos, na pequena telha. Chegavam vários ônibus e ela não partia, sem coragem de deixá-lo ali, mesmo sabendo que o reencontraria no dia seguinte. Trabalhavam juntos, almoçavam juntos, liam juntos, fumavam juntos inúmeros cigarros, riam juntos, viajavam juntos. Mas também brigavam juntos. Depois faziam as pazes num restaurante da Rua Maria Paula que ficava aberto até tarde. Tomavam cada um uma taça de vinho. Ela gostava de seco, ele de suave. Deixavam tomar conta o rubor da bebida alcóolica. E tudo ficava bem. 

Quando ela comprou um carro, os dois deixaram de lado as caminhadas. Passeavam com a janela aberta, queimando gasolina de uma ponta a outra da cidade, às vezes pelas estradas, rumo ao Interior. Não freqüentavam mais os hotéis do Paraíso, porque não havia onde parar o carro. Optaram pelo drive-in de Santana, perto da casa dele. Matavam lá a urgência do sexo. Uma vez ela esqueceu o farol aceso e a bateria do carro pifou. Tiveram que empurrar o carro para fora do drive-in, bem em frente ao Campo de Marte, aos olhos vistos de travestis à procura de um cliente. 

Eram felizes, mas começaram a sentir falta das caminhadas paulistanas e até combinaram que um dia largariam o carro num estacionamento qualquer e sairiam a pé para visitar museus, livrarias, exposições e acabar a noite nos hotéis de antigamente. Fizeram isso uma vez. Mas o passado não veio à tona. A última vez nunca seria igual à primeira.

Acho que não suportaram a nostalgia do começo do amor. Hoje, algumas ruas ainda guardam a lembrança dos dois. As boas e as más. As más acabam sempre superando as boas, porque carregadas de mágoa. A pior de todas foi em Santana, perto da Praça 14 Bis. Foi ali que ele disse a ela, depois de muitas discussões e palavras malditas, que não queria mais. Ela chorou. Não reconhecia aquele rosto familiar que vira da primeira vez. Ele quis abraçá-la. Ela não. Ele ficou em Santana. Ela foi para Interlagos. Os únicos cúmplices que restaram foram as ruas de São Paulo, que guardam muitas dessas histórias. Mesmo dela, mesmo dele, que hoje perambulam por aí com outras paixões. 

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