UM DRAMA EM COMA
Ana Luísa Peluso

Um monstro veio morar aqui perto. O chamo de buraco-monstro, porque é fundo como um buraco e monstruoso como um monstro. Na última vez que escrevi a )...), disse mais ou menos isso. E olha que eu estava na primeira dose de tequila. Eu tentava entender o drama do mundo, sua dor, seu coma, seu cosmo, assim como quem olha pela janela, pensa que vai conseguir entender ou decifrar o porquê de tudo isso. Na verdade era como se olhar para a janela merecesse respostas. E nada acontecia. Foi quando resolvi escrever a )...) e tentar contar tudo.

Comecei da forma mais prosaica que consegui atingir diante disso tudo.

Eis:


“Quinta-feira, doze de setembro de 2015


)...), às vezes sinto um medo do mundo... 

Uma buraco - mas buraco mesmo, sem fim, meio apocalíptico, meio sem jeito da sanidade existir - aparece por aqui, na minha frente; num segundo; num piscar de olhos complacentes. E temo, porquê dele saltam bocas feias, cheias de dentes, prêsas, línguas e baba, tudo na minha cara, vomitado de ódio e com jeito de: "Te peguei, menininha! Só porquê você é boazinha, vai ser a primeira a ser tragada para dentro do meu estômago infernal, onde poderá ver o pior nos homens, para ver se desiste de ser boazinha, sua puta santinha!"

Aí, esse buraco-monstro enlaça minhas costas e cola seus mil rostos ao meu (meio crentes até o fim; ambos), e me segura por alguns instantes. Parecem eternos e talvez sejam; o que mora na barriga do bicho diz que parece que são eternos todos os momentos da vida. E lá dentro, goela abaixo, no estômago do monstro, vejo um pouco do podre do mundo, que eu, por ser uma puta santinha mesmo, pensava não existir mais - apesar dos jornais.

Nesse estômago as vontades são diferentes, )...), daquela que a gente sente. Daquela que emana de você, de mim e de outros nossos. Nesse estômago, as vontades têm formas grotas - talvez pelas lágrimas que correm e marcam; as mesmas que dão forma e música à poesia; são fendas sem fim, sem clareza; verdadeiras grutas “poético-urrantes” de dor. E talvez aí se percam, emaranhadas em sentidos covardes; ressequidas pelos brilhos de outrora - todos foscos -, doloridas pelo pouco da verdade que as compõem. E esse pouco é deglutido também aos poucos... 

É tão triste, )...) ver tudo isso com esse aperto no peito, que se deve - certamente - às mãos do buraco-monstro me segurando pelas costas e me olhando ao mesmo tempo, num abraço insano e apertado, de quem sabe que está prestes a perder batalha.
Mas às vezes eu acho que é só angústia.

Mas mesmo presa, )...), eu não esqueço a dignidade. Tanto que olho aquela pasta de vontades nojentas como quem olha a luz. Aí o buraco-monstro me engole de vez, numa última tentativa de confundir minhas vontades e meus pensamentos. Mas a lembrança de fora é tão forte, quando já se saiu uma vez, que me aquieto por saber do sono do buraco-monstro. Ele não dorme como nós; seu sono é lento, nunca longo.
Mas eu reconheço seu repouso.

É quando ouso: ilumino seu estômago. E as vontades se assustam ao se verem tão desfiguradas. Tão diferentes do que pensavam ser. Ou do que se lembravam de si mesmas. Elas gritam, fazem uma rebelião no estômago do buraco. Chutam as paredes digestivas, se chutam em movimentos bruscos e o buraco-monstro vomita elas todas junto comigo, na primeira esquina que encontra. Ele pensa que encontrou com outro eu. 

Apenas vomita o tolo, quando pensa que assustou mais um. Compreende, )...)? Explico.

É quando noto que o buraco-monstro é burro, apesar de monstro. Cada vez que vomita, achando que pega mais um - mal sabe - liberta outros tantos junto de outros d’eus.

Logo seu estômago estará vazio, )...) (!), porquê nossos filhos serão melhores que nós. E nossos netos muito mais! E dos nossos também! E um dia o buraco-monstro vomitará pela última vez. E perceberá que está vazio, apesar do vômito. Que não engoliu mais ninguém que chegou perto dele, na tentativa de compreendê-lo; mas antes passou a tornar extremamente possível mais alguém acender luz e provocar outra rebelião.

Talvez deixe de existir como buraco-monstro para existir como buraco-outra coisa. Talvez vomite a si próprio e se torne um buraco-não-monstro. Mas ainda que até com ele eu me preocupe, fico muito feliz pela possibilidade das vontades deixarem de ser apenas grotas e doloridas, para se tornarem vontades apenas.

Porquê nesse dia, )...), as vontades não serão ainda iguais, mas serão serenas e a calma me abastece, você sabe. 

Da sua querida.”

Bem, foi isso que escrevi a )...), mas nunca recebi resposta. 
Tomo o quarto copo de tequila, olhando pra noite, como quem vê uma faca. Muito clara...

Muito clara.

E o buraco-monstro me aguarda (mal sabe ele para sua própria – mais uma! – derrota). Provavelmente vai me engolir e vomitar até o amanhecer. 

E )...) vai me olhar mais uma vez do meio das vontades nojentas dos homens, com aquele ar de quem até acredita, mas gosta.

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