A MANICURE QUE ROÍA AS UNHAS
Camila Kementari

A manicure chegou ao trabalho cedo naquele dia, arrastando o filho pelo braço, que chorava incessantemente. Mas ela, porém, não dizia uma palavra. Mantinha o olhar no vazio, introspectivo. 

Trabalhou calada todo o dia, sem responder às perguntas de ninguém, nem falar com nenhuma cliente. Não comeu nem foi ao banheiro, apenas trabalhou, como se fosse algo irracional. E quando acabava ficava apenas sentada, sem se mover, olhando para frente. 

Ninguém entendeu ao certo o que se passava, e o menino apenas chorava. 

"Está doente". 

"O marido foi-se" — ele certamente o fez. 

"Endoideceu". 

Ninguém entendeu. 

Estava trabalhando. Esqueci a manicure. 

Uma menina de uns 11 anos entrou no salão. Estava vestida com uma camiseta lisa, uma bermuda sem etiqueta. Carregava no braço direito uma mochila sem marca. Calçava nos pés um tênis sem língua. Sentou-se no nosso sofá usado. Rejeitou nosso café caseiro. 

Era uma menina interessante, com um olhar perdido, como o da manicure; todavia diferente. Ela não tinha a pele tão branca quanto eu imaginava. Nem a textura de porcelana, como eu almejava. Nem os cabelos tão negros, como eu sonhei. Ela era sim, muito mais complexa do que eu jamais entenderei. 

Nos seus olhos via-se o reflexo do vazio. Em seus gestos, sentia-se a paz. Nenhum de seus movimentos eram em vão. 

Ninguém ouviu sua respiração. Tocava o sofá de uma maneira macia. Seus pés flutuavam sobre os azulejos cifrados. 

Tirou da mochila dois fones, que colocou em seus ouvidos com uma suavidade sedosa. Pude notar também que suas unhas não eram negras como se falava — e ainda se fala. Ouviu seu réquiem em paz, e seguiu o ritmo com o olhar, decifrando os azulejos. 

Quando a menina chegou, a manicure ficou apreensiva. 

Continuou aparentemente vazia, mas o suor a preencheu. Ela agora tremia, e pela primeira vez naquele dia, a vi piscar os olhos. Mas continuava vazia. 

A menina, a contraposto, transparecia a paz, e não inspirava medo, de uma forma que eu jamais cogitei. 

Ela ficou com os fones no ouvido durante um tempo que eu jamais conseguirei contar, mas que me pareceu muito. Não mudou a expressão, nem a aura. 

A manicure, a contraposto, tremia incessantemente, e suava. 

Como suava. Suava com tal intensidade que nunca mais conseguirei descrever da forma que me lembro ter descrito em minha mente naquele único momento confuso, do qual não me lembro. E o suor escorria por todo seu corpo, inanimado. Encharcava sua mente, incólume. 

A menina tirou os fones, como que por de súbito. Abotoou a mochila com suas suaves mãos mínimas. Levantou como uma pétala que desabrocha. Ficou imóvel como uma rocha. Esperando. 

A cena me despertou uma paixão intelectual que eu desconhecia, olhando-a escondida, como Eco, mas sem Narciso. Ficaria ali até a terra me consumir. 

A contraposto, a cena me incomodava, e eu desejava que ela se retirasse, e deixasse minha vida em paz. Mas ela jamais o fez. 

Nem o fará jamais. 

A manicure sabia o que fazer. 

Todos sabem. 

Levantou-se desiludida. Beijou seu filho como se fosse o único. Se dirigiu ao sofá calmamente. Agarrou a mão da menina. Sua paixão intelectual se esvaeceu como que em segundos, sabiamente. 

Pela primeira vez naquele dia lhe vi fixar os olhos em alguém, em vão. Afagou os cabelos da menina, que agora me pareciam negros, como eu sonhei. Ilusão. 

Uma lágrima escorreu pelo seu rosto, até chegar ao queixo e cair no chão. A menina sorriu vagamente, olhando para a manicure, que suplicava. 

A menina apertou ainda mais sua mão, com um olhar inocente, mas perdido. E começou a caminhar para fora do salão. A manicure chorou, e as lágrimas preencheram seu vazio, que agora estava preenchido. Mas a mão da menina o suprimia. 

O menino chorou alto, mas a mão da menina não deixou a manicure olhar para trás. 

Elas caminharam calmamente. Agora eram uma só. Sua paixão intelectual era agora fogo vivo, e a manicure se sentiu completa naquele momento sublime, que extravasava os limites da mente, e desprezava os sentimentos carnais. E a menina amava a todos, os envolvendo em uma atmosfera de desejo que os faziam caminhar. E esquecer as lágrimas. E os filhos. 

Naquele momento eu compreendi os propósitos do Mundo. 

O menino chorou. Foi adotado por rica senhora. Foi campeão de hipismo. E filho da manicure que desejou a menina. 

Esqueci os propósitos do Mundo. Esqueci as pílulas para memória. 

Nunca mais vi a manicure. Esqueci de sua face. 

A contraposto, me lembraria perfeitamente da menina se a visse novamente, em qualquer lugar. Meus olhos caminhariam para ela. Para sua face única, que sempre me recordarei de uma forma tão pálida. 

Mas eu nunca mais a vi. 

Quando a vir me lembrarei. (...) Antes de a vir lembrarei. 

Seu cheiro chega às narinas antes da plástica aos olhos. 

Nunca o senti. 

Mas lembrarei. 

A manicure lembrou. 

Mas sua respiração dantiana é forte demais, quando temos o júbilo de senti-la, e nos perdemos em seu olhar. E desejamos a menina. 

Eu desejarei. 

A manicure desejou. 

Mantenho minha paixão intelectual, e me considero sábia. 

Sábio foi o bardo. Cantou a visão viva da face mórbida em construção. Sem a conhecer. 

Como eu conheci. 

Mas esqueci. 

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