ALTAR DE ENCANTAMENTO E SACRIFÍCIO
Erazê Martinho

Por razões que não cabem aqui, há cinco anos mantenho em casa, ininterruptamente acesa, uma vela votiva.

Imperceptível na claridade do dia, o pequeno lume ganha vida especial quando as luzes da casa se apagam, à hora de dormir ou quando saio pra algum compromisso à noite. Neste caso, "pequeninha, miudinha, quase nada" a luzinha bruxuleante é quem me dá as boas-vindas pelo regresso ao privilegiado isolamento por que optei viver.

Outra noite, depois de cabecear mil vezes o sono, na tentativa de assistir o noticiário da noite e saber qual a nova dúvida da imprensa em relação aos atos do governo Lula — a imprensa não faz outra coisa — sucumbi ao tédio da telinha e apaguei as luzes da sala. Já era hora dormir, como ordenava o bonequinho dos cobertores Paraíba, nos tempos em que a publicidade ia além das parcas e porcas opções do marketing, com suas mesmices de apresentadores aos berros, seja pra anunciar carro usado, quilo do acém, exame seletivo ou massagem estética.

Pra minha surpresa, a vela votiva estava apagada. Ao reacendê-la notei, na parafina já endurecida que circundava o pavio, um pequeno corpo estranho que imaginei ser alguma impureza responsável pelo apagão, mas deixei pra cuidar disso na manhã seguinte.

Cedinho, comecei a fuçar o cilindro formado pela embalagem e pela parafina residual e me surpreendi: o tal corpo estranho era um vaga-lume, estorricado pela chama, semi-encoberto e mumificado pela cera resfriada. Por analogia com a fauna do lugar onde moro — pássaros variados, incontáveis borboletas e pequenos répteis que, a esta época de Primavera, promovem graciosos jogos de sedução pré-acasalamento — imaginei ter-se o vaga-lume deixado encantar pelo brilho da vela. Ou teria sido, romantismos à parte, a inevitável atração pela magia da luz, mesmo em se tratando de um especialista na matéria?

No livro "As portas da percepção", Aldous Huxley narra as sensações provocadas pelo reflexo da luz, ocorridas durante seus experimentos com a mescalina — substância que deu origem ao LSD, o ácido lisérgico responsável pelo deslumbramento, literal, de parte da juventude dos anos 60/70. Tanto nos superiluminados supermercados de Los Angeles, quanto em aparatos dourados utilizados nos cultos e reproduzido na pintura e na iconografia religiosas, o fascínio do brilho provocou em Huxley a mesma alucinante viagem.

Cio da primavera? Alucinação? No caso do vaga-lume e da vela votiva, a bad trip.

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