DESENCONTRO*
Daisy Melo

 

O restaurante esta quase deserto àquela hora: um homem ao fundo encoberto pelas primeiras sombras que sorve lentamente o uísque e um grupo ruidoso de onde rebenta uma sonora gargalhada por sobre a mesa repleta de garrafas vazias de cerveja. Os poucos garçons que circulam se preparam para a troca de turno. O casal entrou, quedou-se hesitante por um momento e então, procurou o canto mais afastado, onde o lusco-fusco da tarde ainda
derrama suas ultimas luzes sobre a mesa.

- Aqui está bom?, pergunta a mulher.

- Pode ser, responde o homem levemente agitado.

- Com pressa?

- Ora, que idéia... sorriu amarelo enquanto se sentava e procurava ao mesmo tempo, os cigarros. Descobriu-os no bolso do paletó.

- Sei o que você está pensando, disse a mulher.

- O quê?

- Que eu vou fazer outra cena igual aquela. Que eu vou me desestruturar novamente. Mas eu não vou, prometo!, enfatiza ansiosa. - foi horrível, eu sei. Eu não devia ter quebrado o copo nas minhas mãos. O sangue se misturando com o vinho...

- Você estava nervosa. E tinha bebido demais -- olha em torno, procurando o garçom - acena. Acho que ele não nos viu, droga!

- Com pressa?

- Já disse que não, que coisa!, responde com leve irritação.

- Desculpa...

As primeiras luzes se acendem. Outra gargalhada vinda do grupo ruidoso, causa um leve desconforto, estremecendo sutilmente o homem.

- Te chamei aqui, Rogério, porque a gente precisa conversar. Eu sei que errei, eu sei que a culpa foi toda minha, mas sei que posso mudar. Eu prometo que mudo. Não é possível que você tenha deixado de me amar. Lembra quando você me chamava de Lilinha? Era tão bom... você lembra, hein?, das nossas noites, do nosso amor? Não acredito, exalta-se. Não acredito que tenha acabado. Sustenta o grito rouco na garganta. Suspira, tenta se recompor - Olha, eu entendo... é uma fase... você já fez 40, eu compreendo que precise de uma mulher mais nova, aquela coisa de auto afirmação e tudo o mais... mas e nós? E o nosso amor? Tantos anos...

- Ah,  Leila...  e ele sorriu frouxamente, um sorriso sem alegria -- por favor não se torture mais - Garcom!, quase grita - onde ele está?.

Um homem alto e pálido, com ar cansado se aproxima: - pois não?

- Uma coca cola, e você?

- Um vinhozinho.

- Vai beber?

- Não posso?

- Pode, claro... e um vinho. Tinto.

- Ah, você lembrou, sorri enquanto estica com as pontas dos dedos, rugas invisíveis da toalha salmão. Arruma os talheres, coloca no colo o guardanapo que jazia esquecido ao lado do prato - Eu ia falando...

- Leila, por favor.... a gente já conversou sobre isso. Acabou. Não torne as coisas mais difíceis para nós. Eu gosto de você, entende? Mas não amo mais. Vou sempre sentir um carinho especial por você. Mas acabou. bate com as mãos espalmadas no tampo da mesa finalizando com um suspiro denso.

O garçom retorna, serve o vinho, a coca - Já vão pedir o jantar?

- O que você quer? Pergunta o homem remexendo-se na cadeira.

- Com pressa?

- Céus.... cobre o rosto com as mãos, cansado.

- Desculpa, desculpa, Rogério. Não pergunto mais. Toma um gole de vinho tentando conter as lágrimas que caem, pesadas quase sem tocar-lhe as faces. Rogério, você precisa ter paciência comigo, foi tudo muito rápido, não é justo! Não é justo!

- Fale mais baixo, Leila, você está quase gritando - disse ele apertando-lhe a mão com firmeza.

Ela apanhou o guardanapo e enxugou trêmula o rosto. Procurou o espelhinho na bolsa e, com a ponta do guardanapo ainda tentou limpar o borrão negro em volta dos olhos úmidos. Riu.

- Não podia chorar, fui chorar, borrei tudo. Estou ridícula.

- Não faz mal, Leila. Não faz mal.

A noite cai totalmente trazendo com ela seus barulhos. O grupo ruidoso e o homem solitário da mesa ao fundo se foram. Outros casais chegam, ocupam as mesas. Risos, vozes alegres. Um copo cai, se quebra. Uma criança corre por entre as cadeiras. Garçons apressados e barulhos de pratos e talheres vindo da cozinha sugere tropeços, movimentos rápidos.

Na mesa um homem e uma mulher se desencontram. O ar em torno se torna viscoso, uma gosma impenetrável. Quase dá para tocar. Mas também é fino, tênue e pode romper-se a qualquer instante, dando espaço a um ódio morno. Ódio que conforta e acalenta. Que toma o coração e a alma sem pressa...devagar. Profundamente.

 

* Baseado no conto "A Ceia" de Lygia Fagundes Telles

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