RADICAL LIVRE
Nato Borges

 

Havia muito tempo não fitava os olhos do filho com atenção, pelo menos não com a atenção que tinha agora. Olho no olho, frente a frente os dois, como muitos anos não se viam, não se encaravam. Curiosamente faltavam palavras, mas os olhares, naquele momento, eram suficientes.

Não chorava, mas tinha os olhos marejados. Quanto tempo? Exatos 26 anos. Uma conta redonda. Tinha 26 anos quando ele nasceu, exatamente a idade dele naquele momento em que se viam. Do alto de seus 52 anos e da fé que o matinha vivo encarava o que considerava um pedaço de si mesmo, uma dádiva concedida por Deus. Via o filho e ouvia seu passado.

Nova. Aquele talvez tenha sido o dia mais feliz de sua vida. Chegou cedo à maternidade e cumpriu com orgulho todo o ritual do pai de primeira viagem. O acompanhamento da mulher, os cuidados do pré-operatório, o vai-e-vem na sala de fumantes, a explosão de alegria do primeiro encontro, a distribuição de charutos, a feliz recepção aos visitantes.

Em cada detalhe, deixava transparecer uma alegria sem fim. Começava ali, enfim, sua vida. Aquilo para o que havia se preparado nos últimos 26 anos e o sinal de que tudo fazia sentido: a continuidade, a complementação da família. Deus havia abençoado seu lar e agora tinha uma família que o seguiria até o fim de sua vida dentro dos conceitos e preceitos em que acreditava. Era abençoado.

O olhar do filho depois de tantos anos lhe dava a certeza de que poderia voltar a ser abençoado. Acreditava poder recuperar-se de todos os pecados, os seus e os dele. Continuavam sem se falar, mas via no olhar do outro o reconhecimento de seus esforços. Naquele momento voltou a crer, pois sentia que os dois demonstravam um arrependimento sincero e reencontrariam juntos o caminho.

Nada mais justo depois de tantos anos de sacrifícios, sempre seguidos de fervorosas orações e entrega. Estava certo que aquela era uma oportunidade, talvez a última, que Deus concedia aos dois para que aparassem toda e qualquer aresta surgida ao longo dos últimos anos. Era um momento sublime, acompanhado de lembranças...

Crescente. Os primeiros anos haviam sido de fato os melhores. Eram amigos, companheiros. Ele via no filho uma reflexo, ainda que melhorado, de toda a fé que havia cultivado. O menino, a cada oração pronunciada por completo, a cada canção declamada com fervor, o enchia de orgulho. Mal disfarçava o olhar que lançava aos seus pares, pois sabia que a sua família era um exemplo, e muitos ali tentavam segui-lo.

Em casa não era diferente. Ainda pequeno, o menino sabia aguardar a chegada do pai para sentar-se à mesa, e sentava-se sem aflição, já pronto para a oração feita sempre antes das refeições. Lembra-se de ter chorado a primeira vez que pediu ao filho para fazer as honras daquela refeição, e o viu fazê-lo sem gaguejar, sob os olhares orgulhosos dele e da mãe.

Não sabia exatamente em que momento perdera o controle. Talvez um passo mal dado, de um ou de outro, e os caminhos seguiram distintos. Sabia que tinha feito o possível para manter-se no caminho escolhido por Deus, mas não acreditava na possibilidade de percorrê-lo sozinho. A família tinha que estar toda unida.

Ainda se lembrava com tristeza da morte da mulher. Foi uma provação para os dois, talvez mais para ele que para o filho, que naquele momento já demonstrava não ter a mesma firmeza de caráter e de fé do pai. Desconfiava que começaram a se afastar a partir dali, mas agora podia ver nos olhos do filho que tinham, enfim, se reencontrado.

Cheia. Na adolescência começaram os desentendimentos. Talvez influenciado pelos amigos, ou pela falta da mãe, o filho começou a afastar-se. Mais que isso, começou a desprezar a fé do pai, que a cada sinal de desprezo do filho mais se apegava Àquele que durante toda a sua vida o havia guiado.

Longe da sombra do pai, o adolescente tornou-se homem, escolheu seu próprio caminho e tornou-se alguém. Ganhou o mundo, dinheiro, tudo. Menos o respeito do pai, para quem nada daquilo tinha valor sem a fé que deveria nortear toda e qualquer ação de sua família. Vendo que o filho desviara-se do caminho, ele mesmo tratou de desviar-se do filho. Por muito tempo, esqueceram-se um do outro.

De fato tinham sido muitos anos, mas menos que o necessário para que se esquecessem completamente. Naquela hora, dois pares de olhos punham em dia tudo o que havia ficado para trás. Não havia mais desrespeito ou desprezo. Estavam unidos, como se fossem um só. Era assim que deveria ter sido a vida toda, pensava o pai.

Via o filho como a continuidade de seu próprio caminho, o caminho que ele escolhera. Não poderia ser diferente, e dava graças por poder corrigir, ali e ainda em tempo, qualquer coisa que houvesse de errada na trajetória dos dois. Enquanto mirava com força o amor os olhos do filho, agradecia a Deus pela oportunidade. Sabia que poucos tinham direito a essa dádiva. E ele teve.

Minguante. O primeiro passo foi dele mesmo. Havia sido ensinado a perdoar e a seguir o caminho do amor de Deus e, se era possível ser assim com todos que o cercavam, não seria diferente com seu próprio filho. Sabia que o orgulho os impedia, mas ele tinha a humildade lapidada pela fé, podia perfeitamente passar por cima de tudo aquilo para reencontrar seu filho e, com seu amor, trazê-lo de volta.

Tanto era assim que não foi difícil convencer o filho a encontrá-lo. A rapidez com que o convite foi aceito só o fez acreditar mais e mais no poder de Deus. Sem dúvida era Ele a lhe iluminar e abrir o caminho, a trazer seu filho de volta. Preparou-se como nunca para o encontro. Sabia que não seria fácil, mas tinha que acontecer. Um dia de orações precedeu a noite marcada. A partir dali, voltaria a ser o exemplo.

Assim os dois chegaram até ali. Era a hora da verdade que ele tanto aguardara e que o filho, certamente guiado por Deus, havia aceitado. Era o momento de corrigir erros, falhas, acabar de vez com os pecados que insistiam em manchar sua família, que, afinal de contas, voltaria enfim a ser uma família.

Olhou mais uma vez os olhos do filho e o próprio filho. Nunca fora forte como ele. Havia puxado a mãe e, como ela, era franzino. Espantava-se por, tantos anos depois, ainda ser mais forte que ele. Espantava-se e agradecia a Deus. Num último impulso, apertou com um pouco mais de força o pescoço do filho, que não se debatia mais. Aos poucos seus olhos ficaram sem vida. Finalmente o filho estava ao lado de Deus e ele terminou tudo o que havia começado, livre de pecados.

 

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