VÔO CEGO
Alberto Carmo

Acharam uma loucura, uma estupidez. Mas, por fim, por respeito, por dó ou por qualquer outra coisa, mesmo que fosse a única forma de acabar com aquela insistência inoportuna entre a família, levaram-no, bem vestido da gravata desajeitada ao sapato engraxado, ao bendito museu.

Não adiantou insistirem na bengala; queria ir de mãos nuas. Nem valeu a comitiva familiar a querer acompanhá-lo no insano passeio; queria estar só. Lá chegaram todos - mãe, pai, irmão e irmã - e o deixaram logo após os degraus da entrada. Deu não mais que dez passos e virou-se:

- Vão embora, deixem-me sozinho! - sentia-lhes o cheiro preocupado pelo vento escancarado da porta. Sentia-lhes também a vergonha perante os demais visitantes - olhos enegrecidos que sabiam jorrar lágrimas diante da cegueira dos que enxergam. Mas enxugou-as com alegria, livre agora que estava dos grilhões do comportamento hipócrita dos mais fracos.

Caminhou lentamente, até chegar à parede mais próxima. A pintura era nova. Percebia pelo cheiro infantil da tinta. A cor, talvez um bege - nunca um branco, um púrpura - pois não trazia o toque da neve, nem o nervosismo das mais vivas - era neutra. Concordou com o pintor que escolheu tal timbre de luz, que não invadia, nem tentava ser mais vistosa do que as obras de arte que abrigava em suas paredes.

Mais alguns passos e uma moldura. - Dourada! - queimava como sol a pino. Percorreu cada relevo da madeira com os dedos. Tinha a sensação de cordilheira, de um marceneiro rococó, artesão de jóia que coroasse uma rainha de cores e contrastes. Um passo mais, e sentiu abrir-se vasta planície. Eram prados de relvas já amareladas; seria outono. Poucas, mas frondosas árvores de folhas ainda verdes, mas já agonizantes. - Europa! - sorriu ao entender os olhos do artista.

Aproximou o rosto com cuidado e encostou a face no centro da tela. - Um rio sinuoso! - era o frescor das águas azuladas, bailarinas. Notou um cheiro cinza, aroma de madeira em fogo. Logo se viu diante de uma casa; simples, pela ausência de muitos cômodos, mas viva, de poucas janelas e muitas emoções. - Devem estar preparando o almoço! - pensou. Hora de sol ainda inclinado, que tocava macio sua pele sem queimar, apenas aquecendo. - É meio da manhã, estão todas agitadas nas lides da cozinha. Posso sentir o cheiro dos temperos, o roçar dos vestidos das mulheres! - confessou em pensamento.

Largou as mãos num passeio carinhoso pelas tintas. A casa vibrava de atividade - panelas, molhos, carnes de caça, ervas sendo conjugadas por mãos habilidosas ao abrigo dos curiosos, acortinadas nas cores marrons das paredes que o pintor sabiamente desenhou. A lenha consumida e varando os segredos da chaminé faladeira. Ruídos misturando-se no passar das horas - o estalo das brasas, o tilintar das facas, o vento lambendo a porta aberta, ciscando entre os contornos de uma árvore. - É de frutas vermelhas! - concluiu facilmente pelo perfume adocicado do assanhamento torneado das maçãs.

A paisagem agora quase consumia-lhe os poros, atraindo-lhe os sentidos restantes como irresistível mulher em trajes de volúpia e beleza só possíveis na mente de um gênio. Tentou abraçar o quadro, jogou-se contra a parede - o peito invadindo a explosão de vida descrita por habilidosos pincéis. Entrou num quase transe e já ia...

- O senhor não pode tocar nos quadros! - veio-lhe uma voz sorrateira como inimigo que se esconde na penumbra dos covardes. - Queira me acompanhar, por favor! - e tomou-lhe o braço com algo de delicadeza e pena.

A família acudiu em correria envergonhada. - Desculpe, desculpe! E colheram de volta o filho impertinente. Ele se deixou levar, sem dar passo, carregado, prolongando o êxtase o quanto pudesse até voltar ao pequeno quarto sem luz.

 

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