RIO CAINDO
Carlos C. Alberts

Dente-Quebrado está na frente. Ele está sempre na frente. Ele é o líder. Por enquanto. Um dia, junto com Queixo-Branco e Quatro-Dedos, vou esperar por ele. Quando ele não estiver preparado. Vamos surrá-lo e baní-lo. Se tivermos sorte, vamos matá-lo. E então, eu, Caolho, vou ser o líder. Neste dia, a Fêmea-de-Fora vai fazer uma careta. Ou mostrar os dentes. Como no dia em que tentei, sozinho, derrotar Dente-Quebrado. Foi quando perdi meu olho. Ela mostrou os dentes. Nenhum de nós se importa de ela ficar nos seguindo. Mas mostrar os dentes depois de uma luta? Isso não se faz.

Estranha, a Fêmea-de-Fora. Além de ficar nos seguindo, é muito pálida. Normalmente, os de-Fora são escuros.

Estamos indo buscar a comida. Precisamos atravessar o rio. Não sei o que deu em Dente-Quebrado para irmos por este caminho. Acho que ele quer atravessar o rio onde é mais raso. Mas estamos subindo muito. Ele deve saber de algum lugar onde a comida seja mais fácil. Sei lá. Posso não gostar dele, mas tenho que admitir que é um bom líder.

Ele está bem à frente. Parou. Deve ter chegado ao rio. Mas que postura esquisita, a dele. Nunca o vi assim. De pé, com a cabeça para o lado, o corpo inclinado para frente. Parece surpreso. Será que viu algum leopardo? Ou um inimigo de outro bando? Não pode ser, já teria dado o alarme. Apresso-me. Quando chego ao seu lado, compreendo sua atitude. O rio está caindo. Como é possível? Da altura de uma árvore de frutos amarelos, a água cai. Ela é branca enquanto cai. Faz um grande barulho ao bater na rocha. Logo depois, ela segue o rio abaixo, da mesma maneira que normalmente: transparente, lenta e silenciosa. Mas o que é aquilo? É lindo. É forte. É anormal. De dentro de minha garganta sai um grito. Não posso evitar. Outra vez. Dente-Quebrado também está gritando. O resto do bando chegou. Alguns também gritam. Dente-Quebrado rola para frente, numa cambalhota. Quatro-Dedos esfrega o peito no chão. O que está acontecendo? Não quero, mas sinto necessidade de movimentar o corpo. Todos estão fazendo isso. E continuamos a gritar. O frenesi continua por algum tempo. Só a Fêmea-de-Fora está parada e silenciosa. Ainda que mantenha a boca estranhamente aberta. Depois, cansados mas felizes, nos sentamos no chão, olhando o rio cair.

Pouco a pouco, vamos nos levantando. Dente-Quebrado atravessa o rio, ainda olhando a queda d'água. Está bem relaxado. Seria um bom momento para atacá-lo. Mas não sinto vontade. Aliás, estranhamente, também estou relaxado. Todos estamos. Dente-Quebrado é um bom lider. Um dia, eu serei o líder. Mas não vai ser hoje. Não quero lutar. Todos me parecem simpáticos, agora. Até a estranha Fêmea-de-Fora. Continuo atrás do meu líder. Vamos buscar nossa comida.

* * *

A velha pesquisadora fecha seu caderno de notas. O coração acelerado. É apenas a terceira vez em mais de vinte e cinco anos de estudo que presencia aquele estranhíssimo comportamento. O bando de chimpanzés continua sua rota depois daquela gritaria perto da cachoeira. Devem estar indo buscar frutas. Mas o que foi aquilo? Tem certeza que eles parecem mais em paz. Até aquele macho agressivo, o que perdeu um olho em uma luta. Normalmente, ela tem medo dele. Mas agora parece manso. A cachoeira tem um efeito calmante? Não sabe. Mas de uma coisa sabe: não vai contar o que viu. Da primeira vez que tentou, no Congresso Internacional de Primatologia, não acreditaram. Ficou sabendo que até faziam piadas sobre sua descrição. Chamaram jocosamente de Ritual da Cachoeira. Como se os chimpanzés pudessem ter algum tipo de espiritualidade. Não foi isso que ela dissera. Mas que aquilo é estranho, não se discute. E faz pensar

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