CLAIR DE LUNE
Eduardo Prearo

Ia quase que correndo até a resplandecente luz do fim de um extenso túnel, com algum medo de tropeçar. Não imaginava como transmutar todas as minhas aflições, não imaginava como hamonizá-las. Túnel nem um pouco abstrato; quanto às aflições, não sei. Era estranho estar perdido de novo. Por que aquilo se repetia? Túnel oblongo; acho que era um túnel de trem, mas não havia trilho. O trem é a morte, não é? Mas não havia trilho, não havia trem, não havia nada a não ser aquela luz branca, um pouquinho azulada. Eu ia pelas beiradas, tateando o concreto escorregadio, livrando-me das poças talvez de óleo negro, olhando sempre para trás, para as trevas, ouvindo gritos que se distanciavam, gritos de terror. Que situação dilacerante! E de repente uma vertigem, uma inaceitável vertigem transportando-me para o passado. Fui caindo, tateava o chão, tateava ratos, ratos enormes que...que nojentamente guinchavam. Era o fim?

--- Já terminou a poesia, Eduardo?

--- É, professor, terminei sim.

--- Então levante-se e leia em voz alta para que todos ouçam.

--- Medonha solidão/ água fervente suja,/ escalpei meus cabelos/ usando as tuas mãos.../ Tratam-me como cão,/ quero sair, moscar-me./ Mas para outro inferno?/ Acho que sou vilão./ Nada me satisfaz;/ pego o trem, pego o táxi,/ vou por aí num tédio.../ metralhando quiçás./ Um azedo ananás,/ comido vorazmente,/ no beco bulimia,/ cachorro late atrás./ Um bem foi reservado/ para mim; algo pobre,/ sou algo pobre, mula,/ acho que sou tarado./ Bruxo mal-educado,/ noite menos inveja,/ cabelo rubro, Marte,/ vadio jamais alado.

--- Qual o nome do poema, hein?

--- Alas que busco, professor.

--- Então você se acha um tarado. Talvez nem saiba o que é ser um tarado...

--- Tarado por chocolate, senhor. Não tem gente que é tarada por futebol?

--- Pois é o que você deveria ser. Vá se confessar. Aí tem malícia...

Que talento esquisito ou que falta de talento! Agora precisava levantar, continuar indo até a luz. Não vai haver nada lá; é uma luz, somente uma luz. Pensei no que faria diante da morte; ela viria e eu me assustaria. Pensei no que havia deixado para trás, uma gritaria, brados femininos emaranhados. Esqueci do que fugia, do porquê de ali ter entrado. Pisei no rabo de um rato e ele guinchou ferozmente. Eu estava selvagem, sujo, e após outra inaceitável vertigem achei-me de novo no passado.

--- Já terminou a poesia, Eduardo?

--- Tá bom professor, terminei.

--- Então levante-se e leia em voz alta para que todos ouçam.

--- Achas que fiz o bem,/ alma minha, diga?/ Auxiliares lindos/ venham, e anjos também.../ Rosa branca, o quintal,/ fadas modelam flores/ com as nuvens mais alvas,/ Cristo que afasta o mal./ Quero amar-te mais, Deus,/ amar-te como nunca;/ sinto na Tua presença,/doces olhares Teus.../ Misericordioso,/ confio em Ti, Bondade,/que para sempre cura,/ que nos faz corajosos./ Torna-nos retos, puros,/ coração é rio límpido,/ Sol que ilumina o fundo,/ não há mais nada obscuro.

--- É inaceitável um moleque escrevendo isso. Será que foi o senhor mesmo quem escreveu tais versos? Se foi, é profanação.

--- Dentro de mim há o bem e há o mal.

--- Vá...vá se confessar. É a besta.

--- Você é que é uma besta. Pela liberdade verbal!

--- Cale-se! Será expulso.

--- Não, não me calo. Por que a gente tem que ser sempre coitadinho nesse Terceiro Mundo?

--- E no Primeiro e no Segundo você acha que não seria coitadinho? Você nasceu no lugar certo. Nasceu pra pagar. Volte aqui! Esse vai sofrer...

Algo gotejava na poça; eu tinha certeza que eram gotas de água. Gotas que iam aumentando em velocidade, num crescendo. Resolvi retornar à toda aquela escuridão. Covardia ou não, resolvi voltar. Mas estava fatigado; teria de reunir todas as minhas forças para erguer-me. Algo no corpo quebrara-se. As gotas transformaram-se num fio de água e logo depois numa torrente. Achei que o túnel ia desmoronar. Fui voltando, mas a água já estava na altura do umbigo, empurrando-me para a luz. Não, não, eu gritava. Precisei nadar, o empuxo era monstruoso. Nadei como nunca havia nadado. Relutância inumana, biônico tornei-me. Havia agora torrentes por todos os cantos, torrentes que saíam de buracos de concreto, papelões sendo rasgados. A base do túnel, seu chão, afundava lentamente. Fui subindo, galgando esponjas marinhas; salvei-me por artes de berliques e berloques; fiquei estirado onde havia entrado, contemplando aquele lago oblongo, a luz ao fundo, e tendo novamente vertigem.

--- Já terminou a poesia, Eduardo?

--- Professor, não sou poeta, não sou escritor.

--- Reconheces...Mas leia o que escreveu. Garanto que agora serei mais indulgente.

--- Não quero ler.

--- Por que você é assim?

--- Não acho que eu seja anormal. Eu sou o que sou, mesmo tendo gente que diz que não sou, que preciso de tratamento.

--- Fala pra mim...a poesia. Humm?

--- Um ser desemparado/ num futuro distante,/ vil lesma incompetente,/ um bofe amargurado./ Vazio como legado,/ empuxo, estaca zero,/ margaridas murchando,/ um destino ignorado./ A caneca tampada/ com tampa de panela,/ xícaras prateadas,/ vinte cruzeiros cada./ A esmola que foi dada,/ o orgulho não ferido,/ dormir pra não gastar,/ a morte pega a enxada./ Se o vento me livrasse/ destas brabas paredes...

--- Já basta.

--- Mas eu não terminei!

--- Vá se confessar.

Não achei um modo de transmutar aquelas aflições, mas pelo menos o susto me distraira. Realmente a vida é dura pra quem é mole, a moleza se mata com chute, lesma com sal, inseto com inseticida. Se eu houvesse ido até a luz, talvez estivesse melhor, não sei. Não tem nexo, também não sou nexalista. Ser letárgico num momento desses é imperdoável. Pus minhas luvas sobre a mesa, o frio e a dor eram intensos. Vesti-as novamente, resolvi sair. Qualquer coisinha me acabrunhava. Ninguém me odiava, imagina! Ah, que solidão! O parque vazio...cadê a superpopulação de domingo? Será que também eu, será que também eu podia dizer que amanhã era outro dia? Havia algo Clair de Lune no ar, algo dias-antes-da-guilhotina. Talvez eu não saiba o que faço. Fui andado e o Sol foi se pondo...Fui andando daquele jeito. Deixara tudo à revelia, até mesmo a própria insipiência.

Se o vento me livrasse,
destas brabas paredes,
me encontrava desnudo,
declamando tolices.

 

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