VALENTINA E O ARCO-ÍRIS
Leila Silva

 

‘Valentina, eu te chamei aqui por que….’ Imaginando o que estava por vir, Valentina abaixa os olhos, morde os lábios, cora um pouco e emudece, tornando mais difícil o trabalho de Gladys. Ao subir a escadinha que levava ao escritório da loja de artigos para bebês e crianças, como estava escrito no painel, Valentina pressentia o tema da conversação para a qual era chamada. ‘É que as festas de fim de ano já estão começando e….’ Gladys engasgava de novo, mexia-se na cadeira, ajeitava o corpo e a barriga grande de oito meses. Estava gorda, por causa da gravidez, talvez, mas não era feia. Nem feia, nem bonita, andava sempre bem penteada e bem vestida. Ela era a dona dessa lojinha onde Valentina preenchera uma ficha fazia um mês e fôra chamada para o período de experiência. A cada vez que um cliente ou, muito mais provável, uma cliente entrava Valentina corava e perguntava muito baixo de que é que ela estava precisando, mostrava o que ela pedia e nunca conseguia insistir ou rir de forma expansiva e jogar conversa fora como as outras vendedoras. Era uma catástrofe! Sabia disso, mas precisava do trabalho.

Aquele não seria um bom dia, teve esse presságio quando se levantou e a mãe, que tinha acordado mal-humorada, disse-lhe que se quisesse café deveria ter se levantado mais cedo e preparado ela mesma. Abandonou o café e foi tomar o ônibus pois que chegar atrasada no período de experiência não era, definitivamente, uma boa idéia. Antes das oito, antes de todo mundo chegar, lá estava ela plantada na frente da loja.

Mas não era verdade que o mal humor da mãe dera o tom ao seu dia, vira a mãe se levantar assim ano após ano, dezessete anos para ser mais exata. Evidentemente não se lembrava dos primeiros, mas também deveriam ter sido assim pois se ela, a mãe, não tinha paciência com adultos, tinha ainda menos com crianças. Por isso mesmo, Valentina nem se lembrava de quando deixara de ser criança. Sinal de que o evento se dera muito cedo pois que tinha boa memória, isso tinha. Lembrava-se até dos sonhos que sonhara lá pelos três ou quatro anos de idade. Sobretudo um sonho vermelho, uma suavíssima noite de natal. Era o único sonho colorido de que se lembrava. Um vermelho forte e um papai noel que não sabia de onde a sua imaginação tinha tirado. De uma coisa tinha certeza, não era a pragmática mãe que tinha alimentado aquela ilusão.

‘Valentina, você não serve para esse serviço…..’ Valentina sente uma dor na garganta, engole, a muito custo, a saliva que se acumula na sua boca. ‘…..Você é muito tímida, sinto muito….’Diz Gladys sem jeito, ao perceber as lágrimas rolando na face de Valentina. Não encontra mais palavras, espera, Valentina limpa os olhos e assina os papéis que Gladys coloca na sua frente, pega o pouco dinheiro que lhe é devido, deixa o escritório, a loja e vai andando nas ruas. Como é que ia chegar em casa e anunciar para a mãe que estava de novo sem trabalho? Nem completara o mês de experiência, não conseguia ser nem mesmo uma vendedora de artigos para bebês e crianças. E sonhava com tanta coisa!

Entra num bar, pede um café e um pão de queijo. Ia tomar o seu café sossegada e só mais tarde ia para casa ou talvez ficasse por aí até dar a hora da aula. Ia ver.

Bem que podia ir na casa do Magno que morava perto dali, mas o Magno era mau pra caramba, ele sofria e queria que todo mundo sofresse igual ou pior. Logo ia perguntar o que ela estava fazendo ali àquela hora, se ela dissesse a verdade ele ia explodir numa gargalhada cínica. Talvez não fosse por pura maldade, mas Magno era assim, pequeno, contrariando o nome. A risada cínica e debochada era a sua defesa contra o mundo que o fizera franzino e sem pai, sem pai e com uma mãe mais rancorosa que uma baleia.

Toma o último gole do café que, felizmente, era forte o bastante, vira os olhos tentando, com o gesto, conter a água salgada que já começava a se acumular ali no canto. Que inferno! Já tinha tido a sua quota de patetice do dia. Como podia dois diminutos canais serem tão traiçoeiros? Piscava muito, na esperança de enganá-los. Um dia ouviu a história de uma criança que nascera com um dos canais entupidos e então, quando chorava, as lágrimas só saiam de um lado. Será possível isso ou seria conversa pra boi dormir?

Não ia na casa do Maguinho porque se ele se pusesse a rir ela ia chorar. No boteco, agora, só estavam ela e o dono, ou empregado, sabe-se lá. E notou que ele a olhava com curiosidade, deve ter percebido aquelas lágrimas querendo saltar. Ia embora antes que ele fizesse alguma pergunta, qualquer pergunta podia ser fatal. Paga e sai, uma vez fora não sabe que rumo tomar, mas se tomar a direita vai passar em frente à loja e isso não quer, toma então a esquerda, caminha até a praça. Se tivesse um bom livro poderia sentar-se ali e passar um tempo. Mas não podia, na verdade, logo algum conhecido passaria e…não, tudo menos isso. Era um saco essa cidade, grande e pequena ao mesmo tempo. Vê a igreja na frente da praça e percebe que era aquele o refúgio de que precisava. Seria tão bom se Deus existisse, se Ele existisse e que fosse bom, que fosse mais humano, não um Deus que ficava pedindo aos homens para sacrificarem seus filhos, que testava a paciência de um, o amor do outro, como se não tivesse nada mais importante no mundo a fazer. Não, isso não podia ser coisa séria. Se fosse ela ia arder no fogo dos infernos e isso, só por esses pensamentos. Isso só podia ser uma brincadeira dos homens que a avó tratara de meter na sua cabeça.

A igreja era fresca e limpa, Valentina molha os dedos na água da pia e os esfrega um no outro. Ninguém na igreja. Senta-se e pensa que podia até deitar-se no banco e descansar um pouco, mas aí logo apareceria alguém para encher o saco, um padre, uma freira ou uma carola. Ajoelha-se como se estivesse rezando, mas não está, está só escondendo o rosto para chorar melhor e em paz. Então quer dizer que se ela fosse Deus, tivesse ela os Seus poderes, ela seria melhor que Ele? Porque ela nunca deixaria um filho seu morrer à míngua ou nascer sem um braço, sem uma perna ou ficar cego…Tudo isso Ele permite quando poderia evitar com os poderes que tem. E, fosse ela Deus, Eva podia ter comido todas as maçãs do paraíso e muito mais. Tudo isso não podia ser sério, mas se fosse ela ia pagar caro. A avó lhe avisara ‘Se não tinha amor a Deus, que tivesse pelo menos temor.’ E temor foi o que sentiu por muito tempo. Agora este temor estava se tornando em raiva. E depois da raiva o que viria?

Limpa o rosto e sai da igreja, quando chega na porta percebe que está chovendo. E se aquilo fosse um dilúvio e a igreja fosse a arca de Noé? Se fosse, ela pularia ou ficaria ali? A chuva durou poucos minutos, ela teve, então, a idéia de ir à biblioteca. Fazia tanto tempo que não ia lá, um ano, talvez. Lembra de quando teve que ir vários dias seguidos para terminar um livro que não tinha coragem de levar até a bibliotecária e, muito menos, de chegar com ele em casa.

Caminha sob os últimos pingos da chuva, mas já eram eles tão fraquinhos que ela nem se dava ao trabalho de esconder debaixo das marquises. Era até bom sentir um pouco daquelas gotas. Olhou para cima e viu um arco-íris surgindo, contou para ver se ele tinha mesmo sete cores.


 

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