DE PAREDES E DE SOMBRAS
Lilly

 

Estas duas faces antigas, coladas contra a moldura, resistiram aos ataques do tempo. Outrora, naquela imensa parede, cuidadosamente conservada no salão de música, havia um espaço verde-pálido, suficientemente exato para que o clã expusesse o patriarcado, orgulhosamente.

Multiplicados à medida que se passavam os anos, um por um, os retratos de família iam sendo modificados, atualizados ou recolocados em novas posições para ceder espaço aos recém-chegados membros. Outras vezes, para ocupar os espaços deixados pelos que se iam eternizando.

Cheia de claros ecos de felicidade e de dores camufladas, com seus segredos e suas denúncias a parede guardava todas aquelas faces, risonhas ou não, muitas vezes surpreendidas pelo holofote antiquado de uma luz de flash, do velho fotógrafo de família.
Arrumar cada um dos rostos do clã numa sala de verde opaco, tornara-se desde muito, um sagrado ritual de família. Motivo para reuniões e confraternizações fora de época e de duvidosos humores.

Em um tempo, vieram acomodar-se na parede já amarronzada todos os rostos de filhos, de netos e de netos desses filhos... Aquele desvão da casa parede que ganhara vida própria: uma parede que crescia!

De um ano a outro expandia-se demasiado para uma parede simples de um casarão antigo. Muitos primos ficavam tristes: a sala não lhes sabia. Outros, não faziam mais nem tanta questão, estariam ali mais dia menos dia.

Era admirável como em um período ou estação, aquela parede do salão de música se preenchia. Como uma torrente de vida a invadir a sala que há tempos quedara-se muda de músicas e de sons infantis, a tal parede revivia. Calada, mas feliz, porque completa. Muda e repleta de si e de tudo que lhe cabia.

Depois de um tempo, mudaram-se os parentes para o sudeste outros para o sul, devido às secas e ao verde que amarelecia. Novas faces em breve tornariam a ocupar o espaço sagrado enquanto tudo o mais ao redor da parede envelhecia ou morria.

Um dia, tal qual pessoa que sabe que está a morrer, aquele espaço de concreto amarronzado e carcomido pela salinidade do vento e insalubridade das horas, simplesmente parou de crescer.

A família começara a diminuir? Ou o que aparecia nas molduras eram apenas os rostos esmaecidos e desesperançados por dores e perdas, distâncias e ausências? Viver não é fácil para quem fica na parede. Há que saber lutar para não amarelecer ou enquadrar-se para sempre. Ante aqueles rostos tristes, aprende-se que morre não é só não viver. Morrer também é viver sem viço, sem vigor, sem cor ou esperança. É assim que é.

E dessa maresia ou des-vida foram-se perdendo, um a um, retirando-se e deixando no antigo lugar apenas o ocre da moldura e de suas sombras...E eram sombras amargas, pois não compreendidas. A parede esquecera-se de ensinar que tudo o que se retém da vida é a vida que se retém. Não é beleza nem nada que se compre por vintém. Se há um segredo no sorriso daquelas duas faces remanescentes, vencidos os moldes e o enquadramento do tempo, se há um segredo, estes dois pareciam saber. O que se ama não se perde no tempo, nem por vida nem por morte.

Há sempre risos nas sombras e lágrimas ao sol. Há soluços sem soluções.
Mas se o tempo é uma torrente que a todos leva sem não, tudo o mais só faz sentido se guardarmos o bom e o belo emparedados nos desmundos e nos desvãos da gente.

 

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