TORRENTE
Marcelo S. Lopes

quatro e quarenta... este relógio não sai das quatro... amanhã de manhã o cara do tempo vai dizer com aquela voz média de ninar rinoceronte: "a madrugada mmais fria dos últimos ccinco anos", e vai acabar o segundo bloco do jornal... pra dar essas notícias até que tá bom... e mesmo se tivesse alguém com uma voz melhor, não é só voz que conta... o cara tem que ter carisma pra uma coisa dessas... credibilidade não... isso é com aqueles mapas, animações, estatísticas, institutos e imagens de satélites... a gente nem sabe se aquilo tudo é verdade... nem presta atenção direito... mas eles estão lá e a gente acha bonito... está na moda... tudo interativo... e virtual... e ainda tem a chamada em destaque pro tempo "com fulano de tal", que já é uma garantia... parece até o Faustão soltando "uma grande figura humana..." antes de entrar o convidado... ou o contratado... eu vou estar bem longe quando você acordar... você sempre levanta no meio do segundo bloco... vai estar com aquela cara inchada, com as olheiras nas orelhas, pensando que eu fui tomar um café pingado na padaria... eu nunca mais vou tomar café pingado... quando você entrar no banho eu já vou estar ó, ssiuuu... e você nunca vai saber que eu fumava três cigarros no corredor do prédio esperando você entrar no banho... amanhã... amanhã eu não vou dormir mais nesta cama não, viu? não vou mais abrir esta gaveta pra procurar uma meia... você não precisa se preocupar com isso... vou comprar trinta meias de uma vez... cara... vou ter uma gaveta só de meias... cheia... seu Roberto chegou doidão de novo... álcool... naquele dia bateu duas vezes aqui em casa... se eu dormisse eu ia ficar outp... aliás, amanhã eu vou até dormir... se bem que hoje em dia até café faz mal... até dormir faz mal... até sair de casa faz mal... devia ter arrebentado a cara daquele motorista oilhf ad autp... mas eu pego ele... era isso que eu devia fazer... atropelar todo mundo... sai da frente que eu tô passando... locomotivado... aodf-es o chefe, a vizinha, o motorista e você, principalmente... aodf-es... não quero mais dividir... quando ligar lá pro trabalho vão dizer que eu não apareci... eu não sinto raiva de você... é que você tá me fazendo mal... eu sei que é sem querer, mas que que eu posso fazer? dormindo assim nem parece... se você dormisse assim o tempo todo até que não era mal... mas você sempre acorda... sempre no segundo bloco do jornal... se pelo menos você dormisse até a hora d´eu sair... talvez eu nem fosse hoje... mas você sempre acorda... vai direto pro banheiro... fazer a sua "higiene matinal"... disso eu tenho raiva... que mania de falar as coisas de outro jeito... parece que tá sempre fazendo cena... não sei pra quem... mas não é por isso que eu vou te deixar não... eu nem sei direito... é por isso também... é por causa dessas manias suas... mania de ser diferente... mania de tentar ser diferente... você é igual a todo mundo... você ronca... e fica se olhando pelos espelhos do shopping... ainda escolhe este apartamento com grades nas janelas... eu não devia ter vindo morar aqui nunca... se eu tivesse alugado uma casinha, mesmo que fosse lá no subúrbio, lá na zona oeste... mas fui concordar com você... agora eu vou embora e não posso nem dar uma explicação... eu sei que você vai ligar pros nossos amigos... e pra minha mãe... coitada... mas não tem jeito... se eu contar pra ela você vai saber... e eu não quero que você saiba... não queria fazer você sofrer... eu sei que é impossível... até eu vou sofrer... não é porque é você não... se pudesse... se... mas eu não posso... você não vai entender... vai querer me amarrar com ofensas... pior até... melhor eu ir logo... uma ofensa é uma âncora... vai ver é por isso que eu vou te deixar... a gente nunca se ofendeu... e eu não quero que a gente comece agora... logo agora que tá tudo certo na minha cabeça... vou comer alguma coisa... melhor eu vestir um casaco... se eu bebesse que nem o seu Roberto nem precisava de casaco... nem precisava ir embora... e a mulher dele bebe também... se bobear ela bebe até mais que ele... e o apartamento deles também tem grades nas janelas... não sei como eles conseguem... mas eu só bebo café... e nem deveria... ainda mais café de padaria... é... a gente se acostuma com qualquer coisa... minha mãe fazia um café daqueles... tudo arrumadinho na mesa... papai morreu de tanta manteiga nas veias... vai ver a mamãe planejou tudo... vinte e dois anos de muita manteiga... ele detestava aquele café do hospital... coitado... a gente acha que é dono do próprio nariz... se você tomasse café e comesse pão com manteiga eu esperava... mas você nem toma café em casa... inventa um suco diferente todo dia... se eu fosse o cara da padaria vetava... é suco de laranja e pronto... não tem nada nesta geladeira... nem pó de café... e só tem mais dois cigarros... vai dar cinco horas... a padaria já vai abrir...

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