TESTEMUNHO DO AMOR
Samuel Silva

 

Não sei como tudo começou, assim de modo exato, apenas o que pude descobrir, de uma informação aqui, uma fofoca ali, sempre tentando separar o joio do trigo, rumor do fato, é o que posso contar e o faço, pois minha vaidade de deter conhecimento é maior que a discrição recomendável. Do que sei, tudo se deu, ou melhor, tudo que resultou no que se deu, quem deu e a quem, teve origem em um diálogo desinteressado e casual entre Mardrússia e Efésio numa sala de bate-papo na Internet, esta aranha de pernas de polvo que hoje parece nos envolver em cada ato cotidiano e mesmo nos do extraordinário. Não vou me deter nesse início banal porque com certeza todos já foram alguma vez (e muitos, diversas) a uma sala virtual dessas e sabe como acontecem as trocas de mensagens naquele ambiente propício às desinibições, às exteriorizações psicopatológicas e até relacionamentos exóticos entre seres que se constroem um na imaginação do outro para só então morrerem e renascerem, quando tanto, na realidade física de um encontro cego em shoppings centers ou outros locais públicos, sim, pois por mais inocente, ingênua ou desesperada que esteja a pessoa sempre resta uma cautela abrigada no instinto de sobrevivência e ninguém é tão besta de ir para o desconhecido sem a segurança, ainda que ilusória, que nos dá as aglomerações.

O encontro dessas almas foi um desatino do destino ou uma ironia mal-colocada de Deus ou dos deuses, que nestas coisas sou por Pascal. Particularmente - e creio que me darão ao final razão - era uma espécie de crônica previamente anunciada, de tão repetida a história que hoje mais que qualquer coisa é recurso de um mau escritor ou caricatura de uma verdade.

Mardrússia era uma mulher já trintona, nem bonita nem feia, com uma vida sem sabor de dona-de-casa que vive para os filhos e o marido, resquício de um modelo de família de séculos passados. Fora educada como uma moça de família de classe média e obteve um diploma de nível superior de pouca serventia em países como o nosso, em que os humanistas se extinguem na competição com os técnicos e afins.

Trabalhou algum tempo no departamento de recursos humanos de uma empresa, onde conheceu aquele que viria a ser seu marido e pai de seus filhos, engravidou, casou, foi demitida durante a gravidez, recebeu a indenização devida após um longo processo trabalhista e nunca mais retornou ao mercado de trabalho por uma mistura de fatores, desde a baixa remuneração oferecida que não cobriria todos os custos decorrentes de sua ausência do lar até uma certa acomodação com o papel “do lar”, pois não se esqueça que era moça de família de classe média e com os valores típicos deste segmento enraizados na sua personalidade, apenas revestidos por um verniz de independência e realização individual que brilhou no fim da adolescência e foi se tornando opaco e gasto no pós-faculdade e o tempo em que se viu envolvida nos assuntos domésticos. O marido, que ainda noivo de Mardrússia passara em um concurso para emprego público, ganhava pouco, mas o bastante, sem precisar sacrificar-se demais e mantinha sua rotina com rígido controle das despesas, salvaguardando seus chopinhos com o pessoal da repartição e o futebol com os antigos amigos da época do colégio e pouco sobrava assim para noitadas com a esposa, no máximo uma pizzaria quinzenal com toda a família. Era, como se vê, uma vida como a de qualquer uma, vulgar e majoritária, sem emoções fortes, boas ou más, pois nem morte na família acontecia, os pais dela resistindo à foice de Cronos com alguma dignidade, os irmão também.

Efésio, por outro lado, era a mais pura tradução do macho latino de poucas posses, atalhando as responsabilidades e os compromissos com aquela esperteza canalha que tanto é celebrada como parte da nossa mítica identidade nacional, ora como algo bom, ora como nocivo. Um bom malandro, cafajeste de quintal de subúrbio, conversador, dissimulado, alegre, bom de copo e de cama (isto em sua própria opinião, que não julgamos pertinente cotejar com as das mulheres com que esteve). Sabia tocar violão as músicas do Chico, Djavan e não se furtava a tocar Andanças para a platéia brincar de coral. Jogava bola, dizia gostar de poesia e teatro, sambava com passinhos maxixados. Usava ouro nos pulsos e no pescoço, mas sem exageros, e tinha um cordão com a medalhinha de São Jorge e Nossa Senhora de Aparecida, junto com um colar de contas que fingia esconder e encabulado referia ser “de santo” ou de torcedor do Flamengo, dependendo do ouvinte curioso. Usava assinatura com três pontos que acreditava identificá-lo secretamente como maçom e trabalhava em um cartório por obra e graça de do padrinho tabelião, onde tirava o dinheiro para seus poucos luxos, estes de que já falei. Por indicação de um companheiro de farra descobriu a Internet, primeiro pela porta da pornografia, depois também as tais salas de bate papo, sonhando com mulheres belas e fáceis, prontas para algumas horas de romance e diversão com esta paródia tropical do donjuanismo. Aliás, tinha em casa o vídeo do filme com o Johnny Depp e nele se via, gozoso, quando a auto-estima o abandonava em uma fase de fracassos amorosos e aprendeu a música tema para tocar no violão lançando olhares de paixão para sua eleita de ocasião.

A verdade é que Efésio começou a entrar nas salas de bate-papo sem grande sucesso no início, mas depois que aprendeu um pouco dos códigos próprios daquele cenário, por que, sim, tem toda uma ritualística e uma liturgia de aproximação diferenciadas, como igualmente as boates, barzinhos, rodas de pagode, ambientes de trabalho tem cada um as suas. Efésio adorou a linguagem curta, meio infantil, despretensiosa; aderiu alegremente ao mecanismo dos pseudônimos qualificativos e acabou fixando-se e ficando conhecido como “Abandonado” ao perceber a atração do signo sobre as mulheres. Sua única reserva quanto àquele meio e quanto aos “travestidos” e os acintosamente sexuais, os homens que se passavam por mulheres e os que usavam apelidos anatômicos grosseiros, mas isso havia, de um jeito ou de outro, em qualquer lugar, até em seminários religiosos, ora!

Um dia, final de expediente cartorário, Efésio começou a conversar com alguém que usava o pseudônimo de “Heidi”, pensando que fosse uma professora daquelas que tem um adesivo “hei de vencer mesmo sendo professor” colado no vidro traseiro de um chevete batido, e encabulou-se todo, sem deixar transparecer, quando ela explicou que era o nome de uma personagem de literatura menina-moça, tipo poliana e outras que tais. Muitas outras vezes “Abandonado” conversou reservadamente na sala de bate-papo com “Heidi”, de um lado ela com suas emoções, frustrações, estados de espírito adolescentes, do outro ele cheio de insinuações, duplos sentidos, indiscrições calculadas, num duelo que não se pode dizer verbal pelo maltrato ao vernáculo, mas uma esgrima de disfarces, do sátiro sedutor e a pura ninfa, ele se fazendo sensível e compreensivo, doce e carinhoso, ela, pueril e inocente na sua busca do ombro amigo que se transmute em alma gêmea, até que um dia ela leu um e-mail dele, acobertada sua identidade por um provedor de anonimato, em que com o coração torturado confessa estar apaixonado por ela, mas que não ousava ter nem mesmo a ilusão de ser correspondido.

E “Heidi”, com palavras vagas, deu-lhe esperanças de que sim, pois o amor era lindo e que se vive para amar!

E marcaram, então, dia, horário e lugar para se conhecerem visualmente, poderem olhar um nos olhos do outro e confirmarem seus sentimentos não mais como “Heidi” e “Abandonado”, mas como Efésio e Mardrússia.

O shopping escolhido ficou maior do que era para Mardrússia que se sentia ansiosa, insegura, como se fosse uma garotinha esquecida pelos pais em meio às compras e visse o vazio dos corredores coberto de sombras assustadoras de monstros da Floresta Negra, e olha que era véspera do dia dos namorados, uma data que só os insanos, como são os namorados, vão a shoppings.

Ele estava sentado em uma das mesinhas da lanchonete em frente à vitrine da livraria, este sim o local marcado, mas, bom caçador, preferiu agir de emboscada para verificar antes se a presa valia o esforço, esperando chegar a mulher que portaria uma echarpe estampada como um crachá, ele escondendo entre as pernas a gravata rosa que o delataria como “Abandonado”.

Passada meia hora do momento aprazado, Efésio percebeu uma mulher indecisa andar, parar, voltar e então retornar a andar se aproximando da vitrine da livraria com uma echarpe que de dentro da bolsa deixava ver uma ponta estampada e ele julgou que era Mardrússia, mas que não poderia ser “Heidi”.

Mardrússia chegara esbaforida vindo do colégio dos filhos que ficava no outro lado da cidade, bem longe do seu encontro clandestino para não ser surpreendida por ninguém conhecido seu ou do marido, e não tivera tempo de se preparar como gostaria e estava vestindo um vestido preto que lhe dera a sogra e que realçava o fato de Mardrússia ter perdido a cintura apesar de tantos regimes, as ancas espalhadas para os lados e para baixo, os cabelos carentes de uma escova de cabeleireiro disciplinados à força em um coque preso por um hashi de madeira laqueada, meia-calça disfarçando as varizes adquiridas com a maternidade triplicada e segurando como podia a bunda em descenso.

Efésio deixou a gravata entre as pernas, levantou e foi embora com a sensação de estar extremamente atrasado, sem olhar para trás. “Heidi” tinha 30 anos, era loira de olhos verdes, 32 anos, 1,68 de altura e 54 quilos e gostava de usar minissaias e roupas esportivas. Não viera e mandara outra em seu lugar.

 

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