ÉPOCA DA INOCÊNCIA
Lena Chagas

Saudade. Lembranças, boas lembranças. Da infância e do lugar onde vivi minha infância.

A casa era imensa e aconchegante, com a personalidade da minha avó. Era lá que todos os filhos e netos se encontravam nos domingos de sol. Ficava fora do centro urbano e o acesso, por estrada de terra, aos que não tinham carro, não era, exatamente, o que se queria para um domingo de chuva.

Estranho, mas não lembro dos domingos sem visitas. Mas estão bem presentes os domingos em que a mesa era esticada ao seu tamanho máximo e ainda assim, faltavam lugares. Então, a solução era armar a ‘mesa dos inocentes’, como diziam. E isso era bem ao gosto da minha avó, que sempre preferiu as crianças à parte das conversas dos adultos.

De nossa parte, não havia reclamações nem ranger de dentes. Era divertido e nos sentíamos ‘importantes’ naquela mesa exclusiva. Além do mais, ficávamos fora da mira do olhar crítico do tio que nem precisava falar para demonstrar seu desagrado, caso uma boca ousasse mastigar sem estar fechada. O seu olhar era o bastante. E respeitado. Por isso, não ser notado naquele momento, nos dava um alívio e tanto.

A ‘mesa dos grandes’ sempre me pareceu imensa e as pessoas, maiores ainda, a julgar pela visão que tinha de suas ancas opulentas que se mexiam de um lado para o outro, procurando a melhor posição no assento.

No mais das vezes, a conversa era mais inflamada quando tratavam de política ou muito animada quando alguém trazia uma novidade da cidade ou da capital. Isso sempre era pretexto para alongar por mais tempo o almoço.

Éramos pequenos demais para entender o que ou do que falavam, mas aqueles longos papos em família nos davam uma sensação de segurança, de permanência, de união, apesar de não participarmos deles.

Sempre gostei de observar o quanto gesticulavam e o quanto vibravam com as conversas, mas não ousava chegar perto o suficiente para que me vissem. Assim, aprendi a perceber quando o assunto era ‘picante’, ‘secreto’ ou ‘muito sério’. Também ficava claro que queriam conversar à vontade, quando nos mandavam para o quintal, logo que terminávamos de comer.

E naquele domingo foi assim. Havia uma inquietação no ar desde a chegada dos tios que vieram da capital. Durante todo o almoço e até depois de sairmos pra brincar, a conversa tinha um tom pesado e assim se estendeu pela tarde adentro. Em certo momento, pareciam estar brigando.

Mas os ‘grandes’ sempre se entendiam e na despedida, todos já estavam sorrindo e combinando isso ou aquilo para o próximo domingo.

E lá fora, o nosso domingo brilhava e a gente torcia pra que não acabasse. Brincávamos até que o sol fosse embora e levasse todo mundo com ele. Depois, o cansaço nos levaria pra cama mais cedo e logo, logo, o domingo chegaria de novo.

Não havia com o que se preocupar. Afinal, era só mais um domingo de sol de 1964 e mais um mês de março que chegava ao fim.


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