A COLECIONADORA DE MÁGOAS
Eduardo Selga

 

Há dias em que envelheço subitamente. Seja pela asfixia que o mau humor produz quando consegue chance de me atacar, impiedoso, seja pela desesperança que sinto em relação à raça humana, uma espécie de experiência que me parece condenada ao fracasso por algum talvez erro no cálculo estrutural. Deus me perdoe. Ou ainda quando alguém, julgando-me pára-raios o bastante para suas frustrações e derrotas, dirige-se a mim com palavras pontiagudas e desnecessárias. Sinto-me em tais horas um atropelado numa rodovia escura. Então envelheço subitamente, há dias. E envelhecido permaneceria sempre, até não sei quando, acaso deixasse de tomar alguns remédios. O principal, a que apenas às vezes consigo acesso (essa vida que nos empurram goela abaixo é amarga demais para permitir freqüência maior), o principal, que tem o talhe de apenas surtir efeito quando ministrado durante horas seguidas, o principal é esconder-me da realidade no jardim botânico. Onde me esforço por esvaziar os pensamentos e deslembrar das pequenas vilanias diárias que a muitos causa um prazer íntimo, mórbido, inconfessável.

Era domingo aquele dia, e, apesar das longas horas passeando à beira dos lagos tranqüilos da minha terapia sempre que possível semanal, estava espinhoso absorver o impacto do que ocorrera na sexta-feira à tarde, na Secretaria. Sem dúvida, há umas gentes estranhas habitando este mundo. Talvez subespécie do Homem, mutação genética. Carregam um temperamento que externamente demonstra equilíbrio, bom senso; sorrisos na hora e na intensidade adequadas. Contudo, odeiam-se. E ao mundo inteiro. Ruminam todo o santo dia um rancor adestrado a duras penas. Sempre que podem, amabilidades e palavras muito bem escolhidas, envenenam almas: dúvidas sutis, aparentemente fundamentadas, no espíritos desguarnecidos. E, pior, com o que eu também não consigo atinar, uma felicidade interior gigantesca quando vêem "o circo pegar fogo", principalmente quando responsáveis pelo fósforo ter sido aceso. Há algo de furúnculo, de cancerígeno nessa enfermidade contemporânea. Parecem o torturador que se delicia ao infligir sofrimento à sua vítima e atinge o Nirvana só em ouvir os urros lancinantes. Perspicazes, não atacam inadvertidamente, deixando o impulso emocional tomar conta das ações: escolhem a presa com calma e aguardam o instante exato para a mordedura certeira. Panteras ocultas nas folhagens, olhos atentos, nenhum movimento inútil. Por que meu chefe tinha que me lembrar, usando de uma sutileza cruel e desumana, justamente quando estava envolvido por um ótimo estado de humor, que nunca fui capaz de conquistar um coração feminino, sensual? Ele conhece minhas carências afetivas, onde a necessidade de sapatear sobre a ferida? Mas... o orgasmo de me ver hemorrágico sempre foi para ele sentimento imperador.

A tarde dava-me adeus quando resolvi é preciso ir de volta para casa ainda que eu me desligue do mundo ao alimentar, pipocas e biscoitos, os marrecos do lago. Sentia-me um pouco menos sangrando para o retorno ao abatedouro sem fim que é a vida real. Um ligeiro desconforto, porém nada parecido com a carcaça que eu era desde sexta-feira à tarde. Quando dei conta do tempo, da vida, ela já estava sentada ao meu lado, encarando-me fixa e constrangedoramente. Surgira não sei de onde. Quem aquela moça, pensei com meu soslaio desconfiado. E o coração pateta, virgem, já estava invadido por idéias dum amor talvez quem sabe, sem as malícias da carne porque inocente. Alguma hesitação houve a princípio, interrogações a respeito duma possível inconveniência. Entretanto, decidido a conhece-la. Virei-me, tão cheio de dedos quanto possível, e pude perceber melhor a jovem: uma inexpressividade no rosto cujos traços algo andróginos; vida no quintal dos vinte anos; vestido inteiriço e florido com girassóis exagerados, vermelhos; pés descalços, maria-chiquinha, ramo de alfazema numa das orelhas; sobre o colo, uma caixa de pequenas dimensões.

Não foi à toa que sentei ao lado dele com minhas lembranças encarceradas no caixãozinho. Eu sabia, também freqüentava regularmente o jardim botânico, sabia a que espécie de solidão o espírito dele estava preso. Conhecia de priscas eras aquele desconforto eterno que é viver apenas para aguardar a visita da morte. E de alguma forma queria ser-lhe ombro, amiga. Não! Mentira, mais uma das minhas! Pretendia mesmo era parabenizá-lo por conseguir, melhor do que eu, sobreviver razoavelmente bem às flechas e estilingues da vida, dizer-lhe sou caso muito pior e sem remédio possível. Afinal, diante dele estava uma colecionadora de mágoas. Todas comigo (e eu com ele), uma a uma, no pequeno esquife. Catalogadas. Com certidão de nascimento, mas nenhuma com a de óbito. Inesquecíveis. Meu senhor, tenha bondade desculpar a petulância, sou aparentemente muito mais jovem e talvez não devesse me arrogar conselheira, mas por experiência própria digo não se deixe balear no coração por essa vidinha. Abrir a guarda foi o que fiz há dez anos atrás e eis o resultado: estou morta. Vê? Aqui, peito e féretro, minhas mágoas insepultas. Quando as primeiras nasceram, eu não me permitia enterrá-las; hoje, não consigo. Cada uma das inúmeras pulsa latente bem aqui dentro de mim e do caixão, nódoa indelével. Como (já bebeu?) cachaça: fazem mal, fazem um bem... Maravilha de impossível que é viver sem elas, embriago-me à inconsciência. E vomito com prazer a dose ainda não metabolizada do meu ódio. Porém, ele retorna mais corrosivo. Entende? Adoro sentir ódio. É um furor de sangues voando de pressa nas veias, um conseguir enxergar o poço de cada alma fulaninha que se aproxima de mim. É péssimo, meu senhor. Mas é ótimo. Pareço ter neurônios estropiados, seu pensamento está com essas palavras bem assim agora. Muito antes fosse! Não teria lucidez, ótimo! Minha vida um labirinto sem luz e, portanto, sem nenhum caminho a percorrer. Assim, não me perderia, como tantas vezes. Ah, Deus... já fiz pedidos, desfiei rosários, subi de joelhos várias vezes as ladeiras íngremes que existem dentro de mim... está esperando mais o quê?! Enlouqueça-me, duma vez por todas! E agora... tambores, rufem! Confetes coloridos e fogos de artifício explodindo no céu! Vou abrir meu caixão! Aqui, um pai que só fazia humilhar-me perante quem fosse; ali, o único homem da minha vida. Sugou-me a vitalidade o quanto pôde. Depois, eu bagaço, foi-se embora sorrindo como se nada. Mais embaixo há outros espécimes de mágoas, mais ou menos doloridas, porém considero que minha coleção ainda está bastante incompleta. Estou à procura de alguém diverso das tantas pessoas que já me mataram aos poucos, e que consiga ferir-me na alma de maneira original, para enriquecer meu caixãozinho. Quase tenho certeza de que o senhor entende.Um sofrimento criativo para sentirmos uma dor de qualidade? Nada melhor. Gostou da coleção?

Difícil mensurar quanto tempo fiquei observando a conversa insandecida daquela jovem, Pandora é minha graça, que insistia em mostrar-me uma caixinha de música como fosse um caixão em miniatura, onde estariam guardadas todas as mágoas de sua vida. Senti vontade dizer algo, procure auxílio psiquiátrico, mas... havia um quê de concreto em tanto desvario. Seu rosto sem nenhuma expressão definida e o corpo sem gestos apesar do palavreado infinito causava-me... hipnose, não sei. Ou calafrio? Mudo, consenti meu olhar se afogasse no espelho do lago e me vieram imagens desagradáveis, algumas até julgava enterradas, pessoas várias que me machucaram em algum instante da infância, da juventude, da maturidade. Seqüência sem cronologia. Emergiram de repente, como se eu já não as tivesse perdoado. Redemoinho que espalha por toda a rosa-dos-ventos as roupas do varal.Voltei meu rosto para a moça, e cadê ela? Evaporou. No assento, uma caixinha semelhante àquela, porém manufaturada em marfim e pedrarias. Meu nome inscrito?! Mas como ela poderia saber meu nome? Abri. Curiosidade, dizem, mata. Lá no fundo, abismo escuríssimo, o rosto salafrário do meu chefe, o sorriso cínico, a maledicência. À flor-da-pele brotaram para meu assombro e para minha delícia, a antipatia, a mágoa, a ira, e o ódio. Nunca em minha vida gostei tanto de experimentar aquele sabor na boca, sem muita definição através das palavras. Algo como sangue quente, grito de dor inimigo, entranhas expostas. Desejo e dúvida: fechar e não fechar a caixa. Amanhã, segunda-feira... Outro dia. Ele que me aguardasse.

Aquele domingo foi embora logo que, vencendo a mim mesmo, atirei no lago o objeto que parecia querer me serpentear, fazer de mim um enlouquecido por tantos ressentimentos venenosos. E ainda hoje há dias em que envelheço subitamente. É quando me pergunto por quais caminhos andará a loucura de Pandora.

 

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