O PESCADOR
Kátia Rodrigues

Sentado numa pedra, sozinho, o homem mantinha o olhar, distante. Encolhido, joelhos colados ao peito, pés descalços, braços enlaçando as pernas, mãos de caniço em punho, parecia sentir frio. Vestia bermuda, camiseta, e um chapéu queimado de sol; o dia já ia longe e ele, com o olhar guardado em algum lugar invisível. Não poderia dizer quanto tempo estava sentado, imóvel. Mas desde que amanhecera, quando fui abrir as cortinas, na hora do café, encontrei-o ali. Voltei a sentar-me, sentindo que o dia seria diferente, que ele era a diferença trazida. Levantei-me outra vez, para apanhar o jornal, no quarto. Antes de olhar as manchetes, novamente fui até lá, bisbilhota-lo. De alguma maneira aquele sujeito me mostrou uma fragilidade incômoda, como se todas as demais fossem sem importância.

Mas o dia seguiu, a porta se abriu e fechou com chegadas e saídas. A casa restou em silêncio e, entretida, deixei-o de lado. Eram quase quatro horas da tarde e, ao atender o telefone, andando impaciente pela sala, deparei-me com ele: lá, no mesmo lugar. Apressei-me em desligar. E então, fiquei um bom tempo observando-o. Parecia que tinha diminuído de tamanho, mas estava ainda na mesma posição. Não resisti e resolvi descer, ir até ele, olha-lo de perto. O tempo lá fora prometia trazer chuva, que se armou ao longo do dia. Decidi buscar um casaco. Ao abrir o armário, olhei um agasalho cinza, gasto pelo tempo, mas desses que guardamos por muitos invernos, que nos contam lembranças que aquecem. Peguei-o.

Bati a porta e resolvi descer os dois lances de escada, para encurtar o tempo, como se ele pudesse sair, e eu nunca mais vê-lo. Saindo do prédio, um pouco mais à direita, estava ele lá. Sentado. Aguardei os carros passarem e acelerei os passos, sem saber exatamente o que iria dizer, sem pensar o que me levava até ali. E foi quando vi.

O homem sentado na pedra, encolhido, abraçado às pernas, segurava uma vara; minha presença, a alguns passos, não atraia sua atenção, nem lhe causava estranheza. Ali ele ficava, inerte. Andei alguns passos e fiquei ao seu lado, em silêncio. Imóvel, de alguma maneira senti que eu não o incomodava. Busquei no horizonte um ponto onde seu olhar fixava alguma coisa perdida, e não me detive em nada. Senti o coração aos pulos e só o frio que seus braços mostravam, arrepiados, dizia-me que ele estava vivo. Então me aproximei.

Sem ao menos olhar seu rosto, ou perguntar seu nome, coloquei o moletom em suas costas, e rápido refiz o trajeto de volta. A caminhada até a portaria durou um século. De alguma maneira quis pensar que ele me acompanhava com os olhos. Em casa de novo, espiei-o da janela. Continuava lá: um homem com um agasalho, camiseta, bermuda, chapéu queimado de sol, pernas de fora, esperando... peixes?

A noite chegou, a vida dormiu e já que na escuridão era impossível enxerga-lo, talvez por isso tenha esquecido dele. Mas foi por pouco tempo. Dois dias depois acharam o corpo; parecia que tinha cortado os pulsos. Na bermuda nenhum documento dava conta de quem era. Os pés estavam descalços e vestia um agasalho, meu velho conhecido. Afastei-me em silêncio.

O porteiro da noite, que folgara na véspera, avisou-me que tinha recebido, ao deixar o trabalho uma encomenda, para ser entregue a moça da janela lá de cima. Já do lado de fora do edifício, ia deixa-la sobre a mesa, para que fosse entregue logo. O homem que lhe trouxe o pacote, disse que entregasse depois, pessoalmente, pois era inútil ter pressa e pediu que me avisasse que não tinha mais frio. Ele resolveu então guardar o embrulho em seu armário, no fundo da garagem. Ainda atônita, sem querer falar, ou ouvir muita coisa, qual não foi minha surpresa, ao abrir um saco de papel de pão e receber a camiseta do meu desconhecido amigo morto.

 

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