SILÊNCIO
Kátia Rodrigues

Levantou-se na ponta dos pés. No escuro atravessou o quarto e entrou no banheiro, trancando a porta. Só então acendeu a luz. Estava nua e no rosto a leveza que só o amor deixa. Olhou-se nos olhos, esfregou os lábios, tocando-os com a ponta dos dedos, fazendo um círculo. A boca vermelha, o rosto lanhado. Enfiou as mãos nos cabelos juntando-os no alto. Deixou-os cair, refletida corpo inteiro no espelho. Apoiou as duas mãos na bancada, e desceu os olhos pelos seios, mordidos. Virou-se de lado olhando as costas, marcadas. Empurrou a porta do blindex e abriu a torneira de água quente. Em seguida apanhou no armário uma toalha felpuda. O banheiro começava a ficar enfumaçado. Entrou na água deixando-a cair pelo corpo. Ensaboou-se, olhos fechados, sentindo a água no rosto. Escovou os dentes no chuveiro. Desligou a água e saiu. Enrolou-se na toalha e abaixando a tampa do vaso, sentou-se; de pernas cruzadas começou a passar óleo de corpo nos pés. Subiu pelas pernas, e continuou o trajeto, chegando ao umbigo, rodeando a cintura e indo até os seios. Umedeceu a mão direita, esfregando-a sobre a esquerda, subindo pelo braço. Repetiu agora com a esquerda e terminou com as mãos enlaçadas, ainda meladas de óleo. Levantou-se, penteou os cabelos e apagou a luz, ficando parada, junto à porta, acostumando-se novamente ao escuro.

Então abriu devagar. A janela aberta deixava de fora a noite clara, e o quarto todo branco, onde só tinham uma cama no centro, parecia iluminado. Descoberto, ele dormia de bruços, nu, perna esquerda dobrada, a mão guardada debaixo do travesseiro, e o braço direito ao longo do corpo, palma voltada para cima. Bom vê-lo dormir assim. Abaixou-se, roçou-lhe a boca na nuca, arrepiando-o. Dormia. Saiu do quarto, encostando a porta.

No corredor virou a direita, entrando onde tinham o escritório/ateliê, e os armários; Uma mesa grande, ao lado do micro, e num canto a poltrona. Na outra parede a janela, em frente ao armário. Apanhou na gaveta um quimono azul de flores, comprido, amarrando-o na cintura com a faixa. Tinham combinado que o quarto deles só teria a cama e seria branco. Segundo as teorias que ele defendia, a maneira correta de dormir, era esvaziar a mente e também o espaço onde se dorme. Ocorreu-lhe a idéia de colocar um tatame, mas por fim decidiram-se por uma cama box. E mais nada. A roupa de cama também era branca, igual às paredes e ao piso de pedra São Tomé. Optaram por uma arandela, centralizada na parede atrás da cama, que tinha sempre uma lâmpada muito fraca. Nunca teve insônia, e se dormiam pouco era pelo hábito, de ficarem horas conversando noite adentro, como se às noites lhes dessem as palavras certas. Ou por ficarem horas se amando, rindo, gemendo, sussurrando coisas. Antes dele o sexo nunca tinha sido tão bom. E agora descobria que nunca estava saciada.

Foi até a mesa onde ele tinha a prensa; canetas, tintas, goivas, lixas e sobre o vidro, um desenho iniciado. Olhou. Passou o dedo na madeira limpa, já preparada. Gostava de vê-lo levantar no meio da noite, e ficar horas sentado na banqueta, óculos na ponta do nariz, trabalhando. Às vezes saia da cama só para ver esta cena; dava-lhe um beijo e voltava. Noutras, sentava-se na poltrona e atravessada ficava lendo, até que ele terminasse e fossem dormir. Era feliz com ele, finalmente.

Foi até a cozinha descalça; abriu a geladeira, pegou um copo, tomou água gelada, sentindo-a descer por dentro. Fome! Abriu a gaveta, pegou uma maçã, e foi até a janela. Adorava a vista da sua cozinha, distante do prédio ao lado, que ficava recuado, o que lhe dava privacidade. Tinha os jardins, a guarita do segurança, a portaria fechada, e a vista da rua, escura e silenciosa. Gostava do silêncio desta cidade que nunca foi sua, até conhece-lo. Podia dizer que havia o antes e o depois dele. Nunca mais fora a mesma. E gostava cada vez mais de quem se tornara.

Mordendo a maçã foi até o quarto. Empurrou a porta, tirou o quimono e foi até ele. Deitou-se de lado, olhando-o dormir. Adorava acordá-lo. Um beijo, mais outro. Ele se ajeita, abre os olhos e pergunta se ela está com fome, ouvindo-a morder a fruta. “Hum-hum”, responde. Ele coloca-lhe a mão na cintura, puxando-a para perto; a abraça, ela se aninha, a cabeça no peito. Sim, tenho fome, pensou, soltando-se e sentando sobre ele. Ele se deixa comer, às mãos sob a cabeça. Adorava sentar assim, engoli-lo e olhá-lo nos olhos, devorá-lo em silêncio.

 

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