TRÊISOITÃO
Edson Campolina

Dormiu influenciado pelo clima do entardecer de Santa Teresa. Uma branca e fina névoa, cortada pelos respingos do chuvisco londrino, descera o morro do Redentor em uma preguiçosa avalanche. Adentrara pela noite fria, bucólica e melancólica. Assim foi a véspera que anunciara o jubileu de um trêsoitão batendo à porta da crise da meia-idade.
Apesar do café na cama e a aurora ensolarada com pássaros em toada, a perturbação moral – ou seria melhor psíquica? – atiçara a corriqueira introspecção. Já avesso a comemorações, o dia seria novamente reservado ao convívio com seu fantasma.
Passeou pela cidade dirigindo o carro, mas em direção ao rumo apontado pela esposa, paciente e compreensiva. Em lenta marcha, ouvindo Bach e desejando canto Gregoriano em latim, atravessou as horas do dia. Circunspecto, pendia os anos passados nos pratos da balança de seu julgamento.
Buscando um significado para as quatro décadas, não sentiu saudades vãs dos amores antigos, das amizades perdidas nas circunstâncias, da curta adolescência, da infância entretida em pular rios e cercas, subir em árvores e pescar em açudes e lagoas. Ainda sentia-se jovem. Ainda via no espelho o menino que sempre fora, apesar dos cabelos já grisalhos e de uma acidentada geografia abdominal. Via-se o mesmo. Agora lapidado pelas venturas e desventuras.
Sentiu-se lançado pela catapulta do tempo. O mesmo tempo ao qual, por vezes, invocou suas soluções e que aprisionara as lembranças na escuridão do inconsciente. Um tempo tão curto quanto o porvir. Curto no gozo dos feitos e vitórias, mas longo e perdido nas negligências do exercício do viver.
O passado fora uma batalha na trilha do duro caminho do justo e do perfeito. O caminho das bifurcações em busca da felicidade na luta contra o mal que nos habita.
O dia se foi em pensamentos e omissões. Parou diante da janela a observar a cidade. Sentindo-se um grão de areia no deserto petrificado da metrópole com suas luzes piscantes, renovou o compromisso com seus sonhos perseguidos a cada passo, sem deixar a certeza da morte influenciar o futuro de um refugiado urbano que só quer colher hortaliças ao pé da serra, cultivar lembranças e saudades somente do que se viveu e ler lentamente dissertações de Santo Agostinho.


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