EU NASCI DE ÓCULOS
Elaine Brunialti

Eu nasci de óculos

A minha primeira grande crise existencial aconteceu quando eu completava 6 meses de vida, quando uma foto confirmou meu estrabismo e como era doído ouvir: - ah! coitadinha é vesguinha!

Assim me descobri estrábica, herança de minha mãe e avó, mas como ainda não me olhava no espelho não imaginava o que seria ser vesguinha ao certo! Até completar três anos sabia do fato à boca miúda, pois aí daquele que ousasse falar perto da mamãe e do papai do estrabismo de sua princesinha.

Nessas alturas do campeonato ganhei os meus primeiros óculos e só não fui chamada, de imediato de quatro olhos porque era a primogênita, certamente um irmão mais velho não perderia uma oportunidade como esta.

Assim, entre uma ida e outra ao oculista...

Permita-me aqui um à parte, o oculista era do sindicato dos gráficos, talvez minha mãe até se lembre de seu nome, foi o mesmo durante muitos anos! Os sindicatos daquela época, ao que parece, funcionavam mesmo! Não me recordo de ter de ficado em filas enormes ou de ouvir a mamãe reclamar da demora para se conseguir uma consulta.

Essas idas e vindas ao oculista eram à parte legal, pois íamos de ônibus até o centro da cidade e lá eu podia ver os bondes e muita gente andando rapidamente pra lá e pra cá, já o prenuncio dessa São Paulo de hoje. Depois sempre passávamos em uma ótica e eu ganhava meus óculos novos!

Mas então veio a hora de ir para a escola e lá tive de me acostumar com o título de quatro olhos, muitas vezes sem maldade, outras com alguma, engraçado que na minha sala eu era a única que usava óculos! Ah e tinha de usar um dos olhos tapado à própria pirata da perna de pau, mas as irmãs eram rigorosas e as brincadeiras eram logo cortadas com uma bela repreensão para o agressor e um dengo para comigo O trauma ficava por nunca jogar peteca na hora do recreio, morria de vontade, mas nunca acertava a maldita peteca brincava de outra coisa onde meus olhos não me atrapalhassem, hoje sei que o desvio ou melhor a vesgueira era um dos motivos da peteca sempre passar a um palmo da minha mão. Sobrevivi ao primário.

No ginásio a marcação era menor, mas eu comecei a odiar as aulas de educação física pois as aulas eram de basket ball e a maldita da tabela insistia em nunca ficar no mesmo lugar, pois eu era obrigada a jogar sem óculos e meus olhos estrábicos não conseguiam fixar a cesta. Assim começaram os exercícios ortópticos, ai como eu os odiava pois jamais conseguia colocar o peixinho no aquário ou o cavalinho atrás da cerca ou porquinho no curral! Ou receber aquele flash nos olhos um traço vertical se formava no direito e um horizontal no esquerdo, se eu fosse normal veria uma cruz, mas como era anormal via um traço horizontal e outro vertical, aliás ainda veria assim caso fizesse o tal exercício.

No colégio descobri o quanto os educadores são mal informados, pois voltei a usar o dito tapa olhos, alternando semana no esquerdo e semana no direito, e a gozação não era dos colegas de classe e sim do professor de química que insistia em me chamar à lousa só para poder falar: - hei piratinha zarolhinha para o quadro! Ele nunca soube o quando aquela atitude me desmotivava no tratamento, mas tinham duas pessoas lindas que estavam na mesma classe: minha melhor amiga e o namoradinho da época, que balançavam a cabeça e piscavam para mim como dizendo não liga não!

Veio a faculdade e enfim a cirurgia! Mas não sem antes eu ter de ouvir a pergunta fatal: - mas porque não fizeram a operação enquanto você era criança, agora é só estética, visão binocular jamais! Esse foi o pior momento da minha crise particular com os óculos, para começar a anestesia geral, depois o povo tendo arrepios aos ver meus olhos vermelhos e com pontos ao redor da retina e o resultado final a desejar, pois já estava muito velha para poder dar um jeitinho no meu olhar 21.

Hoje estrabismo virou charme, para quem não é estrábico é claro. Até pensei em operar novamente, mas hoje meu estrabismo tem como amigos a hipermetropia, o astigmatismo e de quebra a tal presbiopia, nome dado à vista cansada ou "vecchiaia" como costumo dizer!

Mas sinceramente vou confessar: - nascer, viver e, pelo andar da carruagem, morrer estrábico é uma crise interna difícil de superar.

 

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