TENTAÇÃO
Rita Alves

Abri os olhos, a cabeça doía um pouco. Levantei bem devagar e ao colocar os pés no chão senti a cabeça reclamar e doer ainda mais.

A dor de cabeça era só uma lembrança indesejável da noite interior. Ele estava sorridente, gesticulava sem parar, certamente achou que não percebi sua maneira dissimulada. Ele sempre ficava com ar angelical quando cometia algum pecado. E eu sabia. Sempre soube. Mas naquela noite especialmente ele estava mais doce que o vinho vagabundo que tomei.

Lembro perfeitamente do sorriso no canto dos lábios, ele não era só maldade e isso me deixava estarrecida. E encantada. Olhos de anjo, gênio do mal.

As horas passavam rapidamente e eu não conseguia dizer o que tinha proposto a mim mesma. Aquele discurso que ensaiei durante horas olhando para o espelho, procurando o melhor ângulo, derrubando a lágrima mais saborosa. E ele não parava de falar sobre amenidades. Eu já estava ficando levemente irritada quando ele resolveu cessar aquele falatório e chegou perto de mim, bem perto, a ponto de sentir a respiração dele cheia de desejo. Eu sei que naquele momento eu deveria tê-lo empurrado ou ter lhe dado um tapa na cara, qualquer reação aceitável que esboçasse todo o meu rancor. Mas, num impulso que até agora não consigo explicar - o vinho de quinta categoria talvez tenha ajudado - beijei a boca dele como nunca antes. Com vontade, com tesão. Que filho da puta, ele sabe seduzir. Eu só pensava nisso o tempo todo. Esqueci o discurso que eu tinha preparado. Paixão. Não consegui me controlar e fui parar na cama dele. Não ter resistido colocou fogo na minha ira.

Fui pra casa arrependida e com uma mentirosa crise de consciência. O telefone não vai tocar, eu sei. Mais uma vez ele vai desaparecer por um longo período até o dia que vai me ligar com aquela voz de homem resolvido - ele sempre liga não importa quanto tempo tenha passado - e então, vou ensaiar novamente tudo o que deveria ter sido dito e vou brigar apenas comigo mesma. Eu adoro crises.

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