REFLEXÃO EÓLICA
Roseli Pereira


Eu moro numa casa. Anos atrás, construíram um lindo edifício residencial duas ou três casas pra lá. Nenhuma das minhas janelas dá para o edifício, e portanto não me sinto invadida. O edifício não tampou o meu sol, e por isso não me sinto prejudicada. Na verdade, o edifício jamais me incomodou em nada. A não ser naquele carnaval em que um de seus moradores viajou sem desligar o despertador, e o miserável começou a tocar em pleno sábado, às seis e meia da manhã. É claro que se tratava de um moderníssimo despertador eletrônico, daqueles que começam tocando baixinho e o som vai crescendo devagar. Daqueles, cujo toque vai mudando para não enjoar dorminhoco nenhum. Daqueles, que nunca desistem até que alguém aperte o botão certo ou os tire da tomada.

Pois eu nem imaginava que existisse despertador assim até aquele fatídico sábado de carnaval, que deu início a dois longos dias de tu-tu-tu-tu-tu, prrréééééimmmmmmmmm, uó, úo, úo, úo, úo e outros quetais. Foi justamente por isso que, naquele sábado fatídico, decidi investigar os incríveis fenômenos da física que trazem certos sons do edifício para dentro da minha casa.

Subi no telhado, olhei, virei, mexi, medi e calculei mas, como nunca consegui entender qualquer coisa de física em toda minha vida, concluí que o som bate na parede do vizinho do outro lado e vem parar aqui.

Foi só no terceiro dia de carnaval que alguém teve a feliz idéia de cortar a energia do tal apartamento e, finalmente, o despertador silenciou trazendo a paz, uma geladeira quente, um freezer degelado e um videocassete devidamente desprogramado, para regozijo de toda a vizinhança. Pelo que eu soube, nunca mais se tocou nesse assunto, nem em reunião de condomínio. E, depois disso, nada mais que veio do edifício conseguiu me atrapalhar. Nem as festas, porque eu adoro festas. Nem a música, porque eu adoro música. Nem o falatório, porque eu também adoro falar. Nem os gritos e fogos pra comemorar os gols do Corinthians, porque eu sou corinthiana roxa. E o sossego durou até um dia desses, quando alguém que eu nem sei quem é decidiu pendurar sininhos de vento num terraço do quinto ou sexto andar.

Tililim, tililim, tililim... tililim, tililim, tililim. Tililim, tililim, tililim!

Desde então, todos os dias eu me levanto ao som de tililim tililim, tomo banho ao som de tililim tililim, cozinho ao som de tililim tililim, falo ao telefone ao som de tililim tililim, assisto televisão ao som de tililim tililim, leio ao som de tililim tililim, durmo ao som de tililim tililim e até acordo de madrugada por causa do tililim, sempre que bate um ventinho mais forte.

E ainda me perguntam por que é que eu ando tão irritada, ultimamente.

Muitos anos atrás, quando comecei a ver sininhos de vento por aí, as pessoas eram infinitamente mais bem educadas e costumavam pendurá-los atrás da porta da sala. Dessa forma, o tililim afastava o mau olhado e os maus espíritos que eventualmente vêm com as visitas, sem incomodar a vizinhança. Mas parece que as visitas do meu vizinho entram pelo terraço do quinto ou sexto andar. De outro modo, o que justificaria colocar os sininhos bem ali?

Suponho que ele poderia ter apelado para vasinhos de pimenta, arruda, alecrim ou espada de São Jorge, que além de poderosos e decorativos são muito silenciosos. Suponho, ainda, que poderia ter inundando seu terraço com litros de água do mar, quilos de sal grosso e sacos de conchinhas, o que garantiria os bons fluidos e não perturbaria ninguém, salvo em caso de vazamento.

Mas não: ele precisou escolher o método menos indicado e pendurou os sininhos no terraço. Tililim, tililim, tililim... tililim, tililim, tililim. Tililim, tililim, tililim! E eu, como sou uma pessoa energeticamente bem equilibrada, que preza a paz na Terra e a harmonia entre os povos, depois de procurar (e não encontrar) forma viável de interromper a passagem de vento ou a entrada de visitas pelo terraço alheio, concluí que só me resta uma alternativa: descobrir quem é essa pessoa de boa vontade, tocar sua campainha e pedir, educadamente, que ela enfie os seus sininhos de vento em outro lugar. Isso é tudo o que, neste momento, eu consigo chamar de ponto pacífico. Pode apostar.

 

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